O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

terça-feira, janeiro 31, 2006

Omo sexualis

O último artigo de César das Neves no DN está ao nível daquele tipo que pensava que homossexual era um detergente para lavar o sexo. O argumento é construído de forma aterrorizantemente estúpida e hábil em simultâneo. CN explicando aos meninos que o Parlamento Europeu não tem o direito de legislar sobre políticas antidiscriminatórias visando a homofobia, dá-nos o exemplo da polémica entre evolucionistas e criacionistas nos Estados Unidos. Segundo o plumitivo, desde que os criacionistas não nos venham impor a sua visão não científica podem dizer o que quiserem; o problema começaria caso estes quisessem estender o seu delírio a toda a sociedade. Assim, o PE ganha a estatura de um Moloch criacionista que, saindo do redil da sua competência (moral, eventualmente) quer determinar o viver das pessoas de bem e moralmente incontestadas ao legislar em favor dos direitos dos homossexuais. Convém dizer que desconfio da suspeição que CN devota aos criacionistas. Quem acredita nas aparições de fátima e se derrete com a Nossa senhora de Czeschostowa teria, a bem da honestidade intelectual, de guardar algumas reservas em relação à teoria evolutiva. Seria a virgem uma mutação evolutiva que reaperece de quando em vez para nos mostrar que as adaptações evolutivas por vezes criam híbridos imprestáveis. Afinal alguém que aparece a pairar sobre as árvores, com uma especial apetência para azinheiras, ou numa cova escura só pode ser um resquício de uma mutação mal sucedida no complexo processo de adaptação darwiniano. Da mesma forma julga CN os homossexuais e designa-os por aberração. O famoso lobby homossexual não deve ser assim tão poderoso, senão o que aconteceria é que acto contíguo CN teria que prestar esclarecimentos à justiça. Estamos em presença de um claro caso de discriminação com laivos de verdadeira e profunda aversão pelos homossexuais. Mas o problema é que isto é um país feito de aberrações, por isso é compreensível que os tribunais tenham dificuldade em lidar com tantas. Logo à cabeça temos o próprio César das Neves, que pensa que uma relação só pode resultar em filhos e só é aceitável se for entre duas pessoas de sexos diferentes, presumivelmente unidas pelos laços do sagrado matrimónio. Estão por conseguinte votadas à perdição eterna as uniões de facto, os casamentos inférteis (ah, mas isso existe? Melhor seria atirá-los da escarpa do monte Taigeto abaixo) o sexo casual ou mesmo, imagine-se, o simples namoriscar com sexo à mistura. São todos sucubos que procuram poluir a simetria cristalina da família cristã.
Há uma nítida linha de continuidade entre este trejeito mental e a primeira encíclica com que o santo padre nos brindou – Christo caritas est. Trata-se do regresso à velha doutrina da estigmatização do relacionamento não reprodutivo e que não desemboca na forma típica da família cristã – que se resume aos papás e mamãs, prole rija e saudável e em quantidade apreciável, com os vovós no natal a comer filhozes e a cuspir o pai nosso na noite do galo. Por outro lado, retornou-se ao anacrónico mito da homossexualidade como uma degenerescência, uma patologia de ordem física –já nem sequer de ordem mental – ideia para qual os biólogos têm contribuído avidamente nas suas últimas incursões no campo da sexualidade. E aqui chegamos à quadratura do círculo. Não por acaso o argumento começa invocando a teoria evolutiva – cientificamente robusta e aceite por grande parte da sociedade...com a excepção dos grupos religiosos. Mas aqui vem a inversão, porventura subconsciente (ainda há espaço para estes termos?). A versão científica está para a aberração assim como a verdadeira (no sentido de alicerçada numa teoria fundacionista) família está para a homossexualidade. Ambas se provam pela espécie de cunho de verdade que é impresso quer à versão científica quer à verdadeira família. Desta forma sai reforçada, pseudo-cientificamente, a premissa de que a homossexualidade é uma aberração.

Um outro aspecto prende-se com a própria noção do que é legítimo impor à sociedade e o que não é. Novamente temos o argumento a assumir contornos de aberração. É legítimo impor um tipo de família ideal, não é legítimo impor preceitos para defender os homossexuais. Contudo, poder-se-ia contra-argumentar que isto só afecta os homossexuais e como tal estão em paridade com os criacionistas. Se os últimos podem pregar o que lhes dá na veneta desde que não interfiram na vida dos outros, por que razão não podem os primeiros ser assistidos nos seus direitos, os quais, efectivamente, não interferem na vida do resto da comunidade? Afinal tem a ver com a esfera dos direitos dos homossexuais e não com um preceito geral que abarcasse toda a sociedade. Não se prescreve nenhuma imposição que recaia sobre a família tradicional, por isso nenhuma interferência entre as duas esferas de direitos. Se alguma coisa existe é uma extensão de direitos da família.

E se o problema é fazer filhos quem deveria ser chamado ao cumprimento da obrigação seriam os heterossexuais (eu ando a tentar, mas sem sucesso até agora). Afinal polular o mundo com crianças é basicamente o trabalho dos heterossexuais (se assim o entenderem, claro). O santo padre tem vindo a fazer um esforço nesse sentido e a virgem que se ponha a fancos para não deixar escorregar o sabonete no poliban (ai que heresia!). Os cardeais recentemente experimentaram a masturbação colectiva para dentro do cálice num esforço de tentar a inseminação artificial com algum santo mais catita. Por isso a igreja tem sido a primeira a fornecer sólidos exemplos de como se cria a base da sociedade.

Em resumo, esta linha de raciocínio é de tal forma destituída de sentido que só nos podemos perguntar se CN está a tentar ganhar a salvação eterna fazendo jus à velha máxima cristã: felizes os pobres de espírito pois deles é o reino dos céus.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Nação crioula


Um influente sociólogo da nossa praça tem vindo a comentar as novas políticas de imigração. Por outra lado, tem vindo a introduzir a noção de "nação crioula" –confesso que tenho dificuldade em perceber se esta se aplica a Portugal ou não-, na reflexão sobre os diversos e potenciais modelos de integração dos imigrantes. E tem principalmente escorado os seus argumentos num entendimento cosmopolita da esfera do político.
Houve em tempos uma sôfrega investida pela ideia do imigrante enquanto força criadora de recursos, a famosa empresarialidade imigrante. Aqui o imigrante era moldado à imagem e semelhança do empresário shumpteriano revestindo-se o argumento de uma pátina celebratória que parecia querer conferir um lugar de excepcionalidade –uma diferentia specifica- ao imigrante empreendedor como forma de justificar a própria imigração. O peso ideológico do argumento é enorme, embora eu nunca tivesse visto nem sequer a fímbria de uma intenção crítica em relação a esta construção.
Reportando-nos à discussão recentemente lançada sobre o direito de voto dos imigrantes, mais do que saudar efusivamente uma proposta que restituiria, em princípio, aos imigrantes uma maior capacidade de influenciar os processos deliberativos, seria porventura pertinente questionarmo-nos sobre o que se fez em Portugal em termos de representação política dos próprios imigrantes. Julgo que muito pouco.
O problema é que em Portugal fica tudo assim –em banho-maria. Acontece que os tubarões que nadam nestas águas não querem perder os contratos chorudos que estabelecem com a administração central e sabem que é arriscado ser demasiado crítico porque isso pode significar perder o lugar na rede clientelar. Por isso mesmo dão uma no cravo e outra na ferradura. Usam termos impantes como "Nação crioula", mas são tíbios quando se trata de mostrar por que razão a “nação crioula” paira nos confins da utopia e tem dificuldade em assentar em bases mais concretas. Abusam do jargão e da figura de estilo, mas pouco nos dizem sobre o que realmente acontece. São relapsos na repetição do inconsequente mesmo que pelos os interstícios deste edifício caduco e rançoso se insinue o velho mito da excepcionalidade portuguesa. Afinal não são os retornados um exemplo de integração generosa e eficaz , exemplo esse a que se devem moldar as estratégias da "nação crioula"? O problema, justamente, é que se enverada pela assunção ad hoc da existência da "nação crioula" sem colocá-la perante o teste da realidade; e como este podemos acrescentar o “espírito humanista” –muito em voga- ou a “nação pluricultural".
A pergunta deve então ser a seguinte: em que medida corresponde Portugal ao modelo da nação crioula? Qual é a distância que nos separa deste catch-all concept? E como podemos nós alicerçar esta noção transcendente numa pragmática quotidiana? Há, com efeito, muito pouca reflexão sobre isto.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Um tríptico sobre Deus

3) Body

Are you admired with all your fatigue? All that is carved in you, in blood, in light, in ointment - o Christ, you blissful creature, what an enormous sign of terror you have become. I love Magdalene. I love her gleaming hair and the impudicity of her nakedness. I love her knees, where a child could have been sited all morning long swaying like in a cradle made of bones and roses. What do you hide inside your demented eyes? Was it pain or the beginning of pleasure? See the squalid, horrid, fragile body being taken down from the crux. There you were the first Magdalene. The one that once said master and so master he had become. Do you remember Magdalene, after all the guilt had been burden on your round shoulders; after all the bodies that have consumed your own - here lies the ghost, the obscene spirit, the perpetual feretory with the smell of death, with the morbid kindness of an emaciated saint. How febrile you seem to be now. How wasted. Bring back your body Magdalene and may we all return to our own bodies as if they were the last abode of the flesh.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

As lições do Tonecas

Cavaco ganha as eleições quebrando a histórica certeza de que a esquerda unida jamais será vencida.

Soares prova um amargo desfecho e retira-se de cena sem chama nem glória.

Alegre consegue uma vitória de Pirro e agora ninguém o cala. Mas atenção porque os portugueses mostraram que ele tinha capacidade para os mobilizar.

Aquilo que Sócrates provou nas legislativas é que era preciso inclinar à direita para captar o centro. E isto é uma tendência aziaga.

O PS sai profundamente penalisado destas eleições e o PSD mobiliza-se para as próximas legislativas.

Louçã recolhe um penúltimo lugar evidenciando que não há diferença entre ele e o partido.

A esquerda, ofuscada pelos resultados das autárquicas, mostrou-se arrogante e desastrada nesta campanha.

Agora é Cavaco por cinco anos

Torna-se imperioso reinventar um populismo de esquerda.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Pax Americana


(um comentário rápido, mas com efeitos visuais)

Amigo oneanellus, lamento mas não concordo contigo. O petróleo num mundo de comércio livre não me parece razão para fazer uma guerra desta envergadura. A Arábia Saudita, o Kuwait estão carregados de petróleo e nunca ninguém se lembrou de os atacar (para além de Sadam, claro). A Venezuela, velha reserva norteamericana, deixou de estar nas mãos dos USA e nunca ninguém mostrou ter intenções de lhe declarar guerra. É que a guerra já começou há muito, não havia era formas tão fáceis de a justificar. O Afeganistão está apanhado, o Iraque também, o Paquistão é como se fosse americano – só falta o...Irão.

Havia um tipo no final do século XIX –se não estou em erro – e cujo nome não me recordo que tinha a seguinte teoria: em termos do planisfério havia um eixo principal que permitia dominar o mundo geoestrategicamente ao qual ele chamou o coração da terra. Quem se apropriasse do coração da terra controlava o mundo. Este eixo, na altura, passava pelo que é actualmente a Europa de Leste e traçava sensivelmente uma linha recta entre Londres e Moscovo; para além disso a zona formava praticamente uma helipse, daí o coração. A nova potência que então se anunciava era a Grande Rússia e a potência em termos económicos era a Inglaterra. Não por acaso o corredor polaco era tão apeticível: por Hitler, por Staline e por Churchill.
Agora vê bem o planisfério e para onde se deslocou o novo eixo de poder: Nova Yorque e Pequim (o segundo eixo devia estar um bocado mais para cima). Traça uma linha recta e onde é que encontras a helipse? No Médio Oriente. O Irão é o grande buraco nesta helipse; a zona que falta preencher. Não descuro o factor petróleo, julgo apenas que não é a razão real. A quem é que os Árabes o podem vender se não for à Europa e aos States? Á China e á India. Controlar esta zona quer militarmente quer economicamente faz com que o balanço de poder se mantenha desequilibrado para os Estados Unidos. E isto constitui, em última análise, uma verdadeira estratégia de sobrevivência imperial.

Eu julgo que as pessoas não perceberam o sentido de um email anterior – sou eu que sou marxista até ao fim e acredito que a história se repete. Torna-se portanto necessário compreender-lhe as lógicas.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Iraque Gate

Sempre me pareceu que os Estados Unidos ao invadirem o Iraque estavam sobretudo interessados em estabelecer uma “praça forte” no Médio Oriente. Desde logo, a deslocação de um impressionante contingente militar após sucessivos bombardeamentos que deixaram em ruínas metade do país não condizia com a estratégia usual de destruição maciça e posterior retirada que assistimos em relação ao mesmo Iraque em 91 ou no Kosovo em 98. É certo que a estratégia anti-terrorista serviu de justificação para a permanência das tropas americanas em território iraquiano. Não obstante, o prorrogar desta permanência anunciava um programa de ocupação territorial e não apenas a típica desmantelação das estruturas de poder com a posterior substituição por um “governo fantoche”. Mas mais do que isso abria uma porta para aquilo que julgo ser um projecto de expansão territorial de cariz imperialista - a seguir vem o Irão.

O que me parece relevante neste caso é que ele decorre directamente da enunciação dos princípios norteadores da guerra preventiva. Segundo estes princípios a possibilidade do armistício, possibilidade decorrente da própria lógica das Nações Unidas, é substituída pela inevitabilidade da guerra. Ao invés do concerto entre as nações para evitar a guerra, esta última é precipitada pelo próprio mecanismo da ameaça. Não é portanto um mecanismo de dissuasão que está aqui posto em prática, é uma fórmula para forçar a guerra. Com efeito, a “nação pária” que se vir acossada reage recorrendo a uma escalada armamentista. O efeito preverso é que a única possibilidade realmente dissuasora é a de obter a bomba – só quando a dita “nação pária” produz a bomba a deflagração da guerra se vê impedida. Veja-se o exemplo da Coreia do Norte. Os EU enceteram a pressão bélica segundo a lógica da guerra preventiva, mas imediatamente recuaram quando a Coreia anunciou que possuia a bomba. Dado que os serviços de espionagem actuais são detentores de uma panóplia de meios profundamente sofisticados, podemos acreditar que não há nenhum bluf neste anúncio e que a Coreia obteve realmente a tecnologia para fabricar a bomba. Sucede que foi justamente isso que evitou a guerra. Esta situação digna do Catch 22 possui igualmente, e diga-se que com alguma ironia, ressonâncias do filme de Kubrick, Dr. Strange Love - ou como me deixei de preocupar e comecei a amar a bomba. A conclusão é: se queremos evitar a eclosão da guerra é bom que comecem a proliferar bombas atómicas.

Por exemplo eu fico muito mais descansado se o Irão tiver uma bomba atómica porque assim sei que os americanos vão pelo menos reconsiderar a intenção –em minha opinião há muito planeada – de o atacar. E por que razão me devo eu preocupar com o Irão se o Paquistão, verdadeira pátria dos taliban, tem a bomba? Durmo por isso mais descansado? Não creio.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Self-fullfilling prophecy

A publicação diária de sondagens pela Marktest despoletou uma polémica sobre o efeito autoconfirmatório que “estas” sondagens produzem. A premissa é a de que “estas” sondagens geram efeitos que condicionam as escolhas do eleitorado. Começando pela tautologia que esta premissa encerra, podemos contrapor que todas as sondagens geram efeitos autoconfirmatórios e não “estas” em particular. Uma sondagem sobre a escolha dos consumidores relativamente ao seu supermercado preferido possui igualmente efeitos autoconfirmatórios. Ou uma sondagem sobre o comportamento sexual das pessoas tem potencialmente a capacidade para os modificar. E é também isso que acontece diariamente no mercado bolsista ou nas reacções de pânico que levam aos crashes da bolsa. Por conseguinte, dizer que “estas” sondagens geram um efeito autoconfirmatório é o mesmo que dizer que um relógio de cuco faz cu-cu! Esta ideia dos efeitos autoconfirmatórios é simplesmente uma tradução do conceito de self-fullfilling prophecy cunhado por Merton nos idos anos 50 do século passado e que tem sido objecto das mais diversas aplicações.

Um segundo aspecto prende-se com a forma como o argumento é esgrimido. Dir-se-ia que soa a qualquer coisa entre o pânico e a histeria a la Freud. Se a histeria é capaz de formar raciocínios delirantes e associações incoerentes, se ela provoca no paciente uma perda de contacto com a realidade, este é com certeza um exemplo. Cada vez me convenço mais que Soares teve azar com a sua nova entourage.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Um tríptico sobre Deus

2) Brain

I’ve always admired myself with this paradox. Was God that created the brain and therefore gave us the possibility to reflect him, or was the brain that created God? Well, beginning with the fact that I have never felt comfortable with the idea that God had created a brain capable of doubting its own creator, one might say that it’s one more of those tricky tests that god sowed in his bumping course.

Something like the eternal doubt on why did god gave the capacity to Eva to disobey his own rules. The question of “free will” which was an integral part of most debates among theologians. I don’t know enough about this controversy to say how and why did it end; but this solution pointed a way out for the basic question: why is the world created according to God’s will and yet man doesn’t act according to his spirit? Because man is free to choose; therefore God only shows the way, the decision to take it or not is up to you. This tendency was incredibly magnified by Protestants and the possibility of self-examination.

Still, this is stained by the old aporia on which came first: God or the Universe? I’ve never seen a convincing explanation for this from religious people or theologians. Lately, some try to conflate the theory of the big bang with this. As the big bang prevent us to discover a primum mobile and so we have to accept that from nothing can come something (a lot of stuff, by the way), so God can be the nothing that had created the everything. In fact, this poses the question of reality and existence. They are not the same. If we accept that things exist regardless of what we think of them then the question if God was the prime creator becomes irrelevant.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Cavacarias


(etim: corruptela de velhacarias)

Coloquemos a questão de maneira irredutível: Cavaco não tem o direito de cantar a Grândola em público!
Pode trauteá-la ao volante do seu carro quando leva a família a passear, no chuveiro pela manhã antes de se encaminhar para a universidade, quando corre de Boliqueime a Olhão; ou mesmo quando mastiga avidamente uma bela fatia de bolo rei. Mas não tem o direito de cantá-la em público.
Tenho andado a dedicar-me ao seguinte exercício: uma compilação de pulhices, aldrabices, atitudes cínicas e reacções autoritárias que devemos a Cavaco durante os gloriosos anos de cavaquismo. Acontece que a memória não é elástica – ou não é tanto que possa ser esticada indefinidamente -, nem o cavaquistão é imarcescível, embora possamos vir a assistir a uma sua reedição.
Assim de repente, e a propósito da Grândola, recordo-me que Cavaco se recusou a colocar um cravo na lapela enquanto mastigava bovinamente uma pastilha elástica a divisar sobranceira e desdenhosamente as comemorações da revolução dos cravos.

Assaltam-me outras lembranças perturbantes: a passividade de Cavaco perante a porrada na ponte 25 de Abril e antes disso a ignominiosa discussão sobre a recuperação do nome original da ponte;
a lei da rolha infligida aos jornalistas;
o discurso à nação com a fotografia de sua santidade em pano de fundo;
o branqueamento do Estado-novo e o resgatar da pide acompanhado com as devidas efemérides e condecorações.
Um padre fascista convidado para um debate na então SIC de Rangel invectivando com voz esganiçada e peganhenta o PREC.
E muitas outras que agora carecem de definição, esbatidas que foram na evanescência do pesadelo.

Faço um repto para que vos junteis a mim e enviais as vossas cavacarias para que possamos fazer uma bela lista. Posteriormente enviaremos a lista para todos os blogues, plantando assim a semente do mal mesmo no espírito mais desprevenido.
Vamos! – enviem as vossas cavacarias.

Um tríptico sobre Deus

1) Freedom

A bold assumption: Man is free. One desires what the body is capable of. One needs to be recognized in that desire. One needs to reflect desire as mirrors reflect beauty (or ugliness). Schopenhauer: I’m the slave of my will, therefore I can never attain absolute freedom. Man is free, I say. Wonder if the flute wouldn’t play at the wrong hours – how could it ever enchant us with its sweet and continuous melody; pursued by angels, invited by demons.
In its total freedom, Man hopes that god come by for supper. God is, indeed, free to choose. All desire and all sorts of desires are their prerogative: to kill, slaughter, give birth or make love are but the ingredients of a continuous narrative of desires invented by god. Is desire bigger than the world? Desire is the world – what contains and what is contained within. Fluxes and atoms, back and forth as day succeeds night and night succeeds day.

God talks with S. Augustine, I had the idea of playing chess with death, says god.
It seems swell, even if one has to make a greater effort to win. Death is the aim of chess, therefore it plays with itself, Augustine replies.
Yeah, replies god in a moody way. But that’s not the all story – Bergman had the same idea and now it simply doesn’t sounds too original.
Oh, Lord of heavens and all blissful creatures that live above the clouds –exhorted Augustine in a twitter that looked uncanny and inhuman- know that I do understand your anguish, your disappointment and your anxiety! Sometimes I have the same feeling: something stronger than me grabs my throat with gelid fingers and tries to asphyxiate me to death – is the urge to sin! I would say satisfy all my desires at once before it’s too late, because I’m heading towards chastity faster than I would think of in the first place.
God replies, are you really for serious or are you just pulling my leg? Without sin I wouldn’t be of any use. So take heed and sin as much as you can; until your body degenerates and nothing but luxury fixes you to earth.
OK, it seems sensible, said Augustine. Let’s strike a compromise then, challenged Augustine: Give me chastity and continence but not yet.

O elogio do pessimismo


Caro Filipe

Regressei à política após o teu gentil e encorajador incentivo, mas não largo a poesia que é o que realmente me dá gozo (embora isto seja discutível em relação a terceiros).
Sei perfeitamente que és apoiante do Louçã e não andava a escrever estas coisas para te hostilizar ou para criar azedume.

Tento pronunciar-me sobre os acontecimentos de forma distanciada e analítica com uns floreados retóricos à mistura. Mas não sacrifico isso por nenhuma estratégia política. Devo-te dizer que o meu candidato é o Soares, mas quando o vi passar em frente de um restaurante perto do colégio de que ele é o legítimo proprietário e ser apupado por toda a gente que estava dentro desse mesmo restaurante percebi que as coisas estavam mal encaminhadas. A política por vezes socorre-se destes pequenos artíficios resultantes de uma fenomenologia prática. Por outro lado, quando vejo um gráfico que me dá ao longo do tempo valores acima dos 50 % para Cavaco deixo o cepticismo de lado e começo a aceitar as circunstâncias. Ao contrário de muitos eu acredito nas sondagens. Sou um pessimista metodológico.

Depois há a história em si mesma, que apenas uma vez nos deu uma segunda volta –em circunstâncias muito especiais - e normalmente tem levado os candidatos à primeira volta para o palácio de belém. Há sempre a possibilidade das coisas se transformarem e devemos acreditar nisso. Muito gostaria eu que cavaco perdesse estas eleições. No entanto eu considero que a campanha foi mal orquestrada e as opções foram as erradas.

quinta-feira, janeiro 12, 2006

A queda de um anjo


Leio no El País que Soares iniciou um ataque cerrado aos media e aos agentes do “capitalismo selvagem”. Dando de barato que eventualmente se refere aos mesmos “capitalistas selvagens” que defendeu com tanto denodo e competência durante muitos e bons anos, pergunto-me o que anunciará esta reacção? (Desculpa Filipe, mas não vale a pena tapar o sol com a peneira). Julgo que esta reacção tem duas justificações – uma corresponde a uma armadilha, a outra tem a expressão do desespero. Atacar os media, sabê-mo-lo por experiência recente, tem o condão de consubstanciar uma certidão de óbito antecipada. Veja-se o que aconteceu a Santana Lopes –personalidade pela qual não nutro grande admiração – mas que serve de case study por ser o exemplo transparente de como hostilizar os media é deveras arriscado. Não que Soares não tenha razão. Com efeito, foi desde o início desta contenda prejudicado e secundarizado em relação ao seu mais directo adversário. Todavia, mostrar que não se tem o apoio dos media equivale a confessar que se está a decair nos índices de popularidade. Sendo os media os verdadeiros fazedores de popularidade nos tempos que correm, isto é antes de mais interpretado como um acto de contrição – o último estrebuchar do peixe antes de expirar fora de água.
A segunda justificação é mais especiosa. Poder-se-á dizer que está de acordo com as últimas intervenções de Soares, com o estilo que tem vindo a assumir enquanto crítico da globalização selvagem e da economia de casino. Mas –corrijam-me se estiver enganado- não me recordo de ouvir Soares verberar os banqueiros portugueses ou estigmatizá-los como se fossem os cães de fila da direita conservadora (embora o sejam, obviamente). Daí que me pareça que Soares está a tentar uma blitzkrieg sobre o eleitorado da esquerda. É óbvio que ele começa a sentir que a corrida o está a cansar demasiado e que o eleitorado do centro lhe escorrega das mãos como grãos de areia.
A triste ironia é que tudo se encaminha para que Soares saia pela porta pequena enquanto Cavaco recuperou a possibilidade de sair pela grande. É claro que a estratégia desesperada de Soares indicia que já só lhe interessa não ficar atrás de Alegre. O mais rude golpe que lhe poderia ser desferido no final da sua carreira política.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Cartas não escritas

Hoje fui atacado por uma lamechice incontinente. Apelo por isso à vossa compreensão e paciência.

Though lovers lost, love shall not
And death shall have no dominion

Por vezes sinto uma urgência em falar contigo que quase sufoco. Em conversa, no café, conversa banal como a dos apaixonados, conversa justa e benéfica como quem se ama, amou, ainda se há-de amar, digo-te, a ira só serve para esconder o que não nos serve para estar juntos, digo-te, mesmo quando estou ausente esta é a conversa que eu gostava que continuasse, recorrente, infindável, imorredoira. E se baixas os olhos procurando no cigarro, pousado como que esquecido no cinzeiro, a resposta para o que não indago então sei-me correspondido e sei que um dia também tu me dirás esta conversa recorrente e infinita, esta dolente relação com as palavras que te percorre o corpo, te atravessa, te define os contornos e te devolve para que eu a diga novamente. Como se houvesse uma correspondência entre o que não dizes e a minha pálida imagem ao espelho. Como se ao iniciar esta conversa a minha voz só fizesse eco na tua e a voz com que me não respondes fosse o preparo físico para a invenção da minha. Então digo: só existo por que me inventas na tua não resposta. Só sou porque insistes em não me responder. Adoro essa palavra infinito que fica, ficará, ficou, para sempre suspensa na tua boca. A voz que eu amo, aquela que não se extingue, a que não pode ser dita e por isso inextinguível, a voz pela qual eu clamo, essa levo-a eu como último gesto de angústia para que se repercuta num desassossegado silêncio.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Marxista até ao fim

“Il ne faut pas désespérer Billancourt” – diz um dos personagens da peça de Sartre Nekrassov.

A história repete-se, primeiro como tragédia e logo a seguir como farsa.

domingo, janeiro 08, 2006

O erro da esquerda (2) ou porque é que eu não concordo com o Filipe ou a esperança é a última a morrer






O que dizes faz aparentemente todo o sentido. Todavia não tem em conta um factor latente que tem a capacidade de fazer pender a balança para Cavaco: o facto de Soares não ser oposição ao governo. As memórias que ressuscitas desses tempos nefastos também eu as consigo invocar com um bocado de esforço. Lembro-me que pairava no ar um autoritarismo insinuante; que certos ícones traziam reminiscências dos tempos do fascismo e da mocidade portuguesa, como o famoso sobretudo verde que era usado religiosamente pelos apoiantes de Freitas do Amaral; e pior do que isso havia a incómoda sensação de que algures nos bastidores de todo aquele mórbido carnaval se perpetrava uma vingança. O ódio à esquerda assumia-se com um gáudio e uma presteza que quem ousasse – dizes tu e muito bem – afirmar-se de esquerda era imediatamente arrolado numa sub-reptícia lista negra: era assim tanto nos liceus como nos empregos. Houve uma instigação, quase violenta, mas certamente carregada de ódio, de pais para filhos como se tivesse chegado a hora de resgatar qualquer coisa que lhes tivesse sido roubada. Só assim se pode compreender que miúdos do liceu andassem a escrever nas paredes “morte” aos colegas. Foram tempos estranhos.

Julgo que as condições actuais estão muito longe deste cenário de guerra civil latente que então se vivia. Mas o que me preocupa mais são sobretudo razões empíricas. Cavaco aparece nas últimas sondagens com 60% das intenções de voto. Os partidos da direita PSD e CDS-PP somaram em conjunto nas últimas eleições aproximadamente 36 %. Significa que Cavaco conseguiu enfileirar sensivelmente 24% do eleitorado repartido entre aqueles que se abstiveram e o que tinha votado em Sócrates . Este último é o eleitorado, digamos, do centro que se desloca pendularmente, ora para o PS ora para o PSD, penalizando geralmente o partido do governo. Para parte deste eleitorado – especulo- tanto faz ser Soares ou Cavaco; mas por isso mesmo é que ele é perigoso. O raciocínio é linear e pode traduzir-se em ditados populares como sejam “não pôr os ovos todos no mesmo cesto” ou “olho no burro outro no cigano”. Por isso é que eu não concordo quando o Pena Pires diz que Soares é o árbitro. Para este eleitorado o árbitro não pode pertencer à equipa que está a jogar e essa é actualmente o PS.

Quanto à necessidade da fragmentação da esquerda. Acho que os partidos apostaram nela como forma de fixar o eleitorado. Todavia, também aqui espreita um perigo: é que os números matam, fixam-se à pele como as braçadeiras dos judeus lhes marcavam a identidade no gueto de Varsóvia. Se Louçã ou Jerónimo ficarem muito aquém dos resultados obtidos pelos respectivos partidos em 2005 a derrota será tendencialmente personalizada – e os meios de comunicação são exímios em fazê-lo.
Pergunta-se a Alice se é possível esquecer. É, normalmente é o que acontece em situações traumáticas – sublima-se.

Quer isto dizer que não há nada a fazer? Não, como tu dizes há esperança que a coisa possa sofrer um volte-face e acho que sim, que todo o trabalho nesse sentido é meritório. Mas como dizia a Emily Dickinson “Hope is the thing with feathers”.
(prometo que os próximos posts vão ser mais pequenos)

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Os pós e as contas

Comentários fragmentários ao último prós e contras (a propósito de coisas memoráveis) suscitados pela reflexão, que ficou pendente, do Filipe.

Os fanáticos da meritocracia

Não há condições abstractas para o exercício da meritocracia. É uma fantasia (perigosa ) pensar que a meritocracia possui um grau zero pelo qual se pode aferir o mérito genuíno. O mérito é somente o resultado de diferenças historicamente acumuladas. A meritocracia premeia aqueles que já partem de uma posição privilegiada. Não é, como tal, o putativo sistema de justiça pura e equitativa. É somente um sistema de reprodução da desigualdade. A defesa encarniçada da meritocracia parte sempre daqueles que não questionam a desigualdade; daqueles para os quais a desigualdade se afigura inscrita na natureza das coisas ou daqueles que mais beneficiam da distribuição de privilégios. Esta defesa do premiar os diferenciais de desempenho esconde, pura e simplesmente, uma defesa intransigente do status quo. Essa é a face de Janus da meritocracia.

Boaventura

Confesso que fiquei desiludido com a prestação de Boaventura. Falar de contrato para uma nova democracia naquilo que me parece ser uma época pós-contratual cheira-me a contra-senso. Dizer que a globalização está desregulada e pugnar pelo alargamento do comércio livre parece-me incoerente (o próprio Pacheco Pereira que é lesto e ladino não o compreendeu). Contrapor à ideia segundo a qual os portugueses se resignavam perante a desigualdade a noção de que éramos um país de protestos e de radical insatisfação (sim, protestos há muitos – mas qual é a natureza desses protestos?) é no mínimo mistificador. Um país onde as pessoas se derretem em louvaminhas ao poder e aos poderosos; onde o sr. Doutor se pronuncia com um ar de submissão e reverência que roça a vassalagem de outrora; onde as pessoas são aviltadas e desprezadas nos seus locais de trabalho sem terem possibilidade de protestar ou sequer activar processos que dignifiquem a sua condição enquanto trabalhadores (basta lembrar a capciosa prática de descontar no salário as idas à casinha – qualquer coisa entre o mais vil terceiro mundismo e o simples despotismo esclavagista); um país onde a precaridade é um mote e o verbo “descartar” é declinado com a impudícia coquete de uma meretriz da alta não me parece corresponder ao retrato de radical sublevação traçado pelo sociólogo de Coimbra. Significa portanto que os protestos caiem, como se diz em linguagem popular, em saco roto. Sim, protestos há muitos (como os chapéus) não existem é estruturas de oportunidade para os efectivar.

O valor acrescentado

E o que dizer da belíssima ideia de Miguel Portas de apostar no valor acrescentado? Pouco difere do que dizia precisamente o relatório Portes há mais de 10 anos atrás (será mais que coincidência fonética?). E o sector, digamo-lo temerariamente, era também o têxtil! Recordo uma vez que ouvi Louçã a explicar brilhantemente as razões pelas quais o modelo de desenvolvimento baseado em salários baixos era uma falácia. Recordo-lhe o brilhantismo, mas não os termos em que expendeu as suas considerações. Seja como for havia uma explicação, de teor económico, que podia servir de cartilha para estas ocasiões. Por que razão não nos explicou Miguel Portas seguindo as pisadas do mestre e recorreu antes à infame teoria do valor acrescentado (nem tudo se pode transformar no Piamonte por obra e graça do espírito santo)? Quando a esquerda se encontra com os gurus da gestão então o mundo está finalmente unido.

Fátima

Mas não há quem a “estrafegue”?

O Mar segundo Banville



Esqueçam Philip Roth, o engodo que é Dellilo, o desinteressante que é Ballard e mesmo a chatice que é a nova revelação consagrada pelo “The Line of Beauty” chamada Hollinghurst. Melhor nem falar de Ian McEwan – bocejante – ou de Jonathan Franzen – esteriotipia e tiques. Fiquemos por dois nomes que são verdadeiramente os que interessam reter no panorama literário anglo-saxónico: Coetzee e Banville. Se Coetzee é, sem discussão, o melhor romancista vivo de língua inglesa, Banville é porventura o melhor prosador. E “O Mar” está aí para o provar. Não tenho nada de muito inteligente a dizer sobre o livro para além de ter gostado muito, mas muito de ter entrado por este mar adentro (how corny can you get?). Porém, o que realmente me espantou foi o pendor crítico de algumas críticas (a verdadeira cacofonia) que andei a desenterrar nas minhas andanças internáuticas.

As críticas a este propósito são descoroçoantes: lamentam a falta de argumento, acusam Banville de não saber criar acção e de construir mal os personagens, de ser absolutamemte solipsista e, pasme-se, de falhar completamente na criação de suspense (de suspense, imagine-se). Proust deve estar às voltas no túmulo com esta nova legião de críticos literários que se deleitam com um bom argumento de Robert Ludlum, com o suspense frenético de Crichton e sobretudo com a urdidura pseudo-científica de Dan Brown.

“Memory dislikes movement” diz a páginas tantas Max o personagem central de “O Mar”. Mas assim como Proust também Banville viaja para recuperar o real através da memória: “a realidade apenas toma forma através da memória” (ou qualquer coisa parecida) diz Proust na Recherche. Essa memória tem que ser invocada no seu estado fragmentário, mas sobretudo para Max ela só é apreensível na ligação contemplativa que se estabelece com as “coisas”. Em verdade, este estado revela uma condição transitória, um “estar” passageiro que identifica o momento da revelação (neste caso sexual) com o momento da finitude e religa os dois através de uma catarse provocada pelo desejo da morte. “Being here is just a way of not being anywhere” anuncia-nos Max salientando a própria contingência da sua vida. A vida só pode ser invocada fragmentariamente porque nada nela, para além da morte, é necessário. Os episódios não obedecem a nenhuma lógica e não existe fio condutor que lhes possa conferir a necessidade da sequência. Surgem insuspeitos e esgotam-se na sua brevidade. Verdade, a linguagem é vergada sob o peso da metáfora, dos antropomorfismos e há uma insistência lírica preponderante. E isto, é certo, aproxima-se mais da poesia. E depois? Um romance em prosa poética já andava a fazer falta na língua materna de Harry Potter.