O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

terça-feira, janeiro 31, 2006

Omo sexualis

O último artigo de César das Neves no DN está ao nível daquele tipo que pensava que homossexual era um detergente para lavar o sexo. O argumento é construído de forma aterrorizantemente estúpida e hábil em simultâneo. CN explicando aos meninos que o Parlamento Europeu não tem o direito de legislar sobre políticas antidiscriminatórias visando a homofobia, dá-nos o exemplo da polémica entre evolucionistas e criacionistas nos Estados Unidos. Segundo o plumitivo, desde que os criacionistas não nos venham impor a sua visão não científica podem dizer o que quiserem; o problema começaria caso estes quisessem estender o seu delírio a toda a sociedade. Assim, o PE ganha a estatura de um Moloch criacionista que, saindo do redil da sua competência (moral, eventualmente) quer determinar o viver das pessoas de bem e moralmente incontestadas ao legislar em favor dos direitos dos homossexuais. Convém dizer que desconfio da suspeição que CN devota aos criacionistas. Quem acredita nas aparições de fátima e se derrete com a Nossa senhora de Czeschostowa teria, a bem da honestidade intelectual, de guardar algumas reservas em relação à teoria evolutiva. Seria a virgem uma mutação evolutiva que reaperece de quando em vez para nos mostrar que as adaptações evolutivas por vezes criam híbridos imprestáveis. Afinal alguém que aparece a pairar sobre as árvores, com uma especial apetência para azinheiras, ou numa cova escura só pode ser um resquício de uma mutação mal sucedida no complexo processo de adaptação darwiniano. Da mesma forma julga CN os homossexuais e designa-os por aberração. O famoso lobby homossexual não deve ser assim tão poderoso, senão o que aconteceria é que acto contíguo CN teria que prestar esclarecimentos à justiça. Estamos em presença de um claro caso de discriminação com laivos de verdadeira e profunda aversão pelos homossexuais. Mas o problema é que isto é um país feito de aberrações, por isso é compreensível que os tribunais tenham dificuldade em lidar com tantas. Logo à cabeça temos o próprio César das Neves, que pensa que uma relação só pode resultar em filhos e só é aceitável se for entre duas pessoas de sexos diferentes, presumivelmente unidas pelos laços do sagrado matrimónio. Estão por conseguinte votadas à perdição eterna as uniões de facto, os casamentos inférteis (ah, mas isso existe? Melhor seria atirá-los da escarpa do monte Taigeto abaixo) o sexo casual ou mesmo, imagine-se, o simples namoriscar com sexo à mistura. São todos sucubos que procuram poluir a simetria cristalina da família cristã.
Há uma nítida linha de continuidade entre este trejeito mental e a primeira encíclica com que o santo padre nos brindou – Christo caritas est. Trata-se do regresso à velha doutrina da estigmatização do relacionamento não reprodutivo e que não desemboca na forma típica da família cristã – que se resume aos papás e mamãs, prole rija e saudável e em quantidade apreciável, com os vovós no natal a comer filhozes e a cuspir o pai nosso na noite do galo. Por outro lado, retornou-se ao anacrónico mito da homossexualidade como uma degenerescência, uma patologia de ordem física –já nem sequer de ordem mental – ideia para qual os biólogos têm contribuído avidamente nas suas últimas incursões no campo da sexualidade. E aqui chegamos à quadratura do círculo. Não por acaso o argumento começa invocando a teoria evolutiva – cientificamente robusta e aceite por grande parte da sociedade...com a excepção dos grupos religiosos. Mas aqui vem a inversão, porventura subconsciente (ainda há espaço para estes termos?). A versão científica está para a aberração assim como a verdadeira (no sentido de alicerçada numa teoria fundacionista) família está para a homossexualidade. Ambas se provam pela espécie de cunho de verdade que é impresso quer à versão científica quer à verdadeira família. Desta forma sai reforçada, pseudo-cientificamente, a premissa de que a homossexualidade é uma aberração.

Um outro aspecto prende-se com a própria noção do que é legítimo impor à sociedade e o que não é. Novamente temos o argumento a assumir contornos de aberração. É legítimo impor um tipo de família ideal, não é legítimo impor preceitos para defender os homossexuais. Contudo, poder-se-ia contra-argumentar que isto só afecta os homossexuais e como tal estão em paridade com os criacionistas. Se os últimos podem pregar o que lhes dá na veneta desde que não interfiram na vida dos outros, por que razão não podem os primeiros ser assistidos nos seus direitos, os quais, efectivamente, não interferem na vida do resto da comunidade? Afinal tem a ver com a esfera dos direitos dos homossexuais e não com um preceito geral que abarcasse toda a sociedade. Não se prescreve nenhuma imposição que recaia sobre a família tradicional, por isso nenhuma interferência entre as duas esferas de direitos. Se alguma coisa existe é uma extensão de direitos da família.

E se o problema é fazer filhos quem deveria ser chamado ao cumprimento da obrigação seriam os heterossexuais (eu ando a tentar, mas sem sucesso até agora). Afinal polular o mundo com crianças é basicamente o trabalho dos heterossexuais (se assim o entenderem, claro). O santo padre tem vindo a fazer um esforço nesse sentido e a virgem que se ponha a fancos para não deixar escorregar o sabonete no poliban (ai que heresia!). Os cardeais recentemente experimentaram a masturbação colectiva para dentro do cálice num esforço de tentar a inseminação artificial com algum santo mais catita. Por isso a igreja tem sido a primeira a fornecer sólidos exemplos de como se cria a base da sociedade.

Em resumo, esta linha de raciocínio é de tal forma destituída de sentido que só nos podemos perguntar se CN está a tentar ganhar a salvação eterna fazendo jus à velha máxima cristã: felizes os pobres de espírito pois deles é o reino dos céus.