O mundo plano

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quarta-feira, março 15, 2006

E a Montanha não pariu um rato



Começo por dizer que gostei francamente de Brokeback Mountain. Não é um filme marcante, e está com certeza longe de ser uma obra-prima da sétima arte, mas cumpre aquilo que promete não defraudando expectativas, especialmente quando estas não são hiperbólicas. As razões pelas quais gostei do filme podem ser enunciadas em três pontos concretos e simples: mostra a América do trabalho -algo que há muito andava arredado de Hollywood-; desfere um ataque explícito aos ícones americanos; e coloca em relevo a hipocrisia da sociedade norteamericana. Consequentemente gostei do filme porque ele possui uma “mensagem”, algo que, estou consciente, na cartilha pósmoderna passa por ser um crime de lesa-arte.
Portanto, ao contrário de Zizek que escreveu um artigo profundamente crítico sobre o filme - artigo esse que pode ser lido no Herald Tribune-, não considero que Brokeback caia no cliché algo pedante e simplista da revelação da homossexualidade como a verdadeira natureza das coisas, como muitos filmes assumidamente gays evidenciam a tentação de fazer. Nem tão-pouco considero que seja um filme apenas sobre homossexualidade como se torna óbvio pelas razões enumeradas anteriormente. Aliás, Zizek parece chegar a essa conclusão a contrario sensu quando enfatisa as reacções virulentas contra o filme manifestadas pela direita conservadora e evangélica. Se alguma coisa estas ilustram é justamente a presença de um objecto estranho que perturba a superficial aparência da ordem admissível. Um exemplo ilustrativo é a acusação feita pelos meios mais conservadores segundo a qual o filme polui a imagem do Marlboro man assumida enquanto símbolo da bravura e masculinidade do velho Oeste. Porquanto uma tal interferência na ordem simbólica norteamericana actual me parece um consciente ataque à América intolerante e despótica dos anos Bush, não se me afigura justo encerrar o filme na categoria de filme homossexual ou filme sobre a homossexualidade tout court. E a prova de que não é afere-se pelas várias possibilidades em termos de argumento que o realizador tinha ao seu dispor: que impacto teria um filme sobre corretores da bolsa homossexuais ou sobre artistas homossexuais? A resposta é óbvia: nenhum.
A escolha de um argumento sobre cowboys homossexuais tem, pois, que ser colocada em diversos níveis de interpretação, níveis esses que suplantam largamente a mera tónica no aventureirismo amoroso de dois homens na América rural dos anos 60. Acresce que Zizek assume que o filme se transporta para o passado para evitar uma colisão com o presente. Penso, no entanto, que também aqui está errado. Basta invocar o episódio, passado não há muito, de um comboy homossexual que foi espancado e crucificado numa vedação de arame-farpado pelos seus companheiros e ali deixado até morrer. O assunto está longe de ser anacrónico e tudo indica que permanece como fantasma não exorcisado.
Por outro lado, torna-se necessário não negligenciar toda uma tradição fílmica que joga com as sinuosidades, os subentendidos, o grande-plano carregado de insinuações, do velho Western. Um exemplo assinalável é o “The big Sky” de Howard Hawks protagonisado por K. Douglas onde o primeiro encontro com aquele que passará a ser o seu companheiro de viagem está, indisfarçavelmente, carregado de homoerotismo. Pode discutir-se se esta aproximação homoerótica entre os personagens não é parte constituinte da matriz do épico recuando, por exemplo, até à famosa relação entre Aquiles e Patrocolo. Brokeback está longe de ser um épico; mas talvez porque torna explícita a relação homossexual quebre os frágeis códigos da masculinidade que sustêm a estrutura do companheirismo e da heroicidade entre homens.

1 Comments:

  • At 2:06 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    Muito bem colocada sua opinião sobre o filme, que por sua polêmica ja demonstra que algo quebrou as normas imposta por um pensamento medieval/finalístico/ortodoxo, senão o porquê do celeuma provocado em sua síntese. Vou mais adiante é um marco não só no cinema mas em uma visão do pragmatismo mundial, que agora tem de conviver gostando ou não de sua interação impositiva em reconhecer outros elementos, que diferem por assim dizer, de seu campo social.

     

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