O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Só-do-Cu


Anda para aí uma mania que impregnou os agregados familiares mais cautos; apoderou-se das balzaquianas mais enxutas, das profissões liberais mais selectas, dos idosos mais enérgicos, dos jovens mais ociosos, da tia e dos sobrinhos que vivem na outra banda, do dono do café que cofia a barbicha enquanto folheia a bola, da rapariga do cabeleireiro que estuda à noite num salão de beleza da Madame Campos e tem por vocação impingir produtos com Aloé Vera alvitrando que rejuvenescem mesmo um rigor mortis de dois dias. E até as crianças mais cerebrais se fecham nos quartos desenhados a pósteres da Leopoldina enfiando-se por dentre os lençóis, em congeminações algébricas, ao arrepio dos trabalhos de casa e já nem sequer se distendem nos sofás para assistir em soporíferas doses aos desalentados e inábeis teletubis.
Outrora chegou a temer-se que os bichanos, cães sarnentos de latido estrídulo ou molossos que repassam a dente a humanal perna se a isso forem instigados, fossem impiedosamente substituídos por uns seres movidos a baterias, que até de mamar pediam, e que davam pelo oriental nome de tamagochis. Foi então profetizada uma era de infernais artificialidades, petulantes robotizações e caprichosas engenhocas que iriam definitivamente retirar o berço da natureza aos novos infantes. A geração anterior, e a outra ainda mais anterior, entretera-se com aranhiços de plástico e gomas tremeluzentes. Mais para trás eram as molas da roupa que construíam manipanços; e flatulências diversas durante o banho de imersão mimetizavam o que mais tarde por indagação extemporânea nos arcanos das gueixas menos renitentes se viria a convencionar chamar de Jacuzzi.
Mas a história, madrasta e especiosa, negando à compita todos aqueles que nela querem lobrigar um telos e que urdem conluios de inexoráveis fins, deu meia-volta, e recuperou nos manuscritos do Mar Morto ou nas entrelinhas do Gilgamesh, ou na mítica narratividade do Mahabarata ou, quiçá, no ancestral feng chui umas quadraturas irmanadas quatro-a-quatro, que dê lá por onde der, têm de somar todas o mesmo número - sem repetições que aquilo não é como no bingo em que escusamos de nos envergonhar se sarapintarmos o mesmo número em cartões diversos.
Este passatempo inescapável que ocupa tanta compenetrada mente por esses fins-de-semana de lazeira ou em exercício de obração a crucificar o hemorroidal pelo tempo que nele se despende ou no amolecimento dos lençóis quando a viril investida foi substituída pela ronceira monotonia, recebeu o achinesado nome de Só-do-Cu.
Então é ver donas de casa, cujos marido trabalham duro no dia-a-dia ou se demoram em esgueiradas nocturnas às putas de Leste, a prespirar furiosamente de caneta rilhada entre os dentes, alguns alvos outros cariados, enquanto cogitam em truques Laplacianos para resolverem a contento o Só-do-Cu. A criançada que não se intrometa que é logo varrida à chapada, com a palma da mão retesada e a boca contorcida a aspergir coriscos e bardamerdas. A rapariga do balcão do Café-di-Roma, bem que se pode esperar por ela, como esperava o outro por Goudot, que ela há-de estar entretida a fazer carreirinhas de Só-do-Cu com tal intrincada precisão que mais se assemelha à teia de Penélope. O cumprimento de horários por parte de autocarros e eléctricos, como se fossem estes dotados de vontade, passou a estar vergado aos compromissos Só-do-Cuais dos condutores da carris. Dantes uma partida de bisca lambida ou o ferrar do galho no terminal eram mensuráveis; mas o Só-do-Cu, como bem se percebe pela milenar sabedoria que lhe está subjacente, é intemporal, incomensurável – tanto pode ser resolvido num piscar de olhos como demorar uma eternidade, empreendendo página a página em graus de maior complexidade e portanto de necessária maior perícia. Esqueçam os papéis amarelados expostos nas vetustas paragens dos autocarros, apinhadas de gente mirrada a esconder-se da chuva molha-parvos, onde se confundem aqueles números todos com medidas horárias segundo o meridiano de Greenwich, mas que são em verdade resquícios do calendário Islâmico deixados aquando do cerco de Lisboa, representativos de uma contagem em luas. Os barcos do Barreiro vão atrasar, com a marujada toda dispersa pelo convés, ensimesmada a fazer Só-do-Cus em vez de recolher a âncora e dar pressão à caldeira. Até o metropolitano, que chega com regularidade invejável, se vai tornar um suplício, com o condutor a abusar do seu delegado lugar de timoneiro, a parar entre o Rossio e o Martim Moniz, na negritude desconsolada dos túneis da Baixa, para acabar uma fila de um Só-do-Cu mais obstinado.
Com esta recuperação de um xadrez caseiro e maneirinho, acessível tanto à empregada bielo-russa, de fulvos e deslizantes cabelos, como à avó esclerosada que dormita sempre com um fio de saliva a deslizar-lhe pela comissura dos lábios, os velhos quebra-cabeças estão de volta. Aquilo que lubrifica verdadeiramente a mioleira, que encera e dá lustro ao cerebelo, que põe as bielas do bestunto a saltitar, que electriza os lobos, seja o frontal seja o inferior, veio para ficar. Nas abastadas casas dos novos-ricos, encimando as mesas de vidro, que mostram através da sua transparência deslizante ufanos tapetes persas, onde dantes se encontrava um sortido de Iolas e de Cláudias Decoração passaram a repousar na sua sageza singular os pequenos fascículos do Só-do-Cu com os ilustrativos caracteres chineses para se saber que aquilo é a sério e não uma qualquer falsificação surripiada aos ciganos do Bairro Padre Cruz.
Esta presença obsidiante começa a estender-se às Universidades e aos liceus onde os jovens estudantes, fartos dos charros e da coca, já sentem o irresistível apelo do Só-do-Cu, tal-qual ratos enfeitiçados pela cantilena do flautista de Hamlin. Génios para ser e aqueles que já firmaram competência nos annais da ciência andam desvairados num arroubo Só-do-Cuista que paralisa a produção académica. E onde antes, nos pesados serões da cinemateca, se contavam hai-cus a emular antigas ágoras palrantes, trocam-se agora segredos de ábaco sem contas, senão as que de cabeça se vão regurgitando.
No Alentejo as tascas dos velhos dominós não resistem ao tufão Só-do-Cu: lá se vai esvaecendo o alegre estrepitar das peças esburacadas impondo-se paulatinamente o zunido compassado do escrevinhar nas abstrusas quadrículas. E aqui ao meu lado já se deita um casal, daqueles que vende saúde e passa os finais de tarde no fitness, torneando bem os corpos e cinzelando os músculos por efeito da tonificação provocada pelo esforço descomedido do levantamento de pesos, sangue que agora se bombeia mas que mais tarde se há-de transformar em coágulos e embolias. Um casal bem bronzeado dos fins-de-semana prolongados em Armação de Pêra; ele delegado de propaganda médica e ela enfermeira no Hospital da CUF. Conheceram-se no ginásio e por lá ainda andam embora agora regressem juntos ao lar e partilhem da mesma dobra de lençol. E ouço-a dizer para o marido, num ciciar enternecido, enquanto se aninham na descompostura do edredão – querido, e se fizéssemos um Só-do-Cu?

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Retórica perversa ou o canhoto mais dextro a oeste de Pecos

Diz o Filipe no canhas:

"Dificultar os despedimentos significa menos competitividade e mais desemprego."

Esta ideia sempre me fascinou. Diríamos então

Facilitar os despedimentos significa [certamente] mais desemprego - esta temos por certa, porque a segunda é derivada directamente da primeira. A competitividade é que permanece uma incógnita.

Por favor, preciso de um copo de lucidez. Há algum economista mentalmente são por aí?

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Da mentira entre nós

A mentira e o seu papel nas relações sociais não foi nunca objecto de grande reflexão por parte das ciências sociais. Talvez porque a demanda dos filósofos pela verdade ou os questionamentos dos pensadores sociais tenha incidido sobretudo no complexo ético da revelação das regras que regulam o viver social tendo por objectivo estabelecer princípios normativos. Esta pressão intelectual para a normatividade laborou para que preceitos reconhecíveis fossem aceites e partilhados como fundacionismos científicos. A ilusão da transparência de que falava Durkheim ou a falsa consciência sobre a qual teorizara Marx eram no fundo injunções positivistas que esperavam recuperar através do racionalismo uma recôndita verdade por detrás das pressupostas aparências.

O ponto de não retorno para a crença nas regras que se transformam em leis que por sua vez regressam ao estatuto de regras atingiu-se com a disseminação do relativismo. Todavia, também o relativismo tem dificuldade em aceitar a mentira como dispositivo organizativo das relações humanas. O relativismo torna a verdade discutível e por isso mesmo impossível de ser assumida como uma única versão; mas não a mentira. Esta última é tão nociva para o relativismo como para as diversas modalidades de positivismo. Se a verdade é relativizada é porque passamos a aceitar versões concorrentes dessa mesma verdade - perspectivas distintas sobre as quais percepcionar uma mesma verdade como pretende o perspectivismo. A mentira não pode ser lida através da mesma assunção sob pena de se negar um fundamento ontológico à verdade.

A mentira teve, e tem, um lugar central na literatura e aí abundam exemplos, dos mais iníquos aos mais inocentes, de como a mentira é instrumental para vivermos em conjunto. A literatura constitui a prova de como a cientificidade (vulgo racionalidade) tem dificuldade em lidar com a mentira. Para a literatura a mentira proporciona as junturas entre diversos episódios e personagens, serve como uma espécie de mobil para a acção. Dom Quixote pode ser visto como o exemplo da superlativização da mentira enquanto justificação para a acção. E muitos outros casos podem ser citados: Bovary vive uma mentira que a precipita para a morte; Anna Karenina não se conforma com a falsidade da sua vida sentimental e decide também pôr termo à vida (as mulheres suicidavam-se em barda nesta época); mesmo recuando encontramos a mentira na maioria das peças de Shakespeare e Édipo Rei encerra uma moral que nos é revelada com a denúncia de uma mentira.

Mas a ciência, mesmo a mais especulativa, nunca tomou a mentira muito a sério. Porém, olhando à nossa volta ou mergulhando nesse imbricado receptáculo que é a memória não podemos senão concluir que a mentira é aquilo que fundamentalmente partilhamos (parafraseando uma frase de Agustina). Porquê então esta incapacidade de reconhecer e analisar a mentira? Uma hipótese que se afigura aceitável é que uma tal aceitação equivaleria a gerar uma contradição insanável dentro do próprio sistema de ideias que governa a ciência. Oferecer um estatuto analítico próprio à mentira é negar a possibilidade de descobrir a verdade. Se isto não é sobremaneira problemático para a filosofia -basta lembrar Wittegenstein- é torturante para as ciências sociais. Seria a economia capaz de conviver com a ideia de que os actores económicos mentem e que a racionalidade dos seus actos é apenas resultado de uma leitura retrospectiva que tenta ver nos efeitos cumulativos gerados pelas suas acções fenómenos emergentes dotados de lógica? Ou seriam a sociologia e a psicologia suficientemente robustas se pressupusessem que o testemunho dos actores é essencialmente falacioso e que a mentira, ao invés de ser uma distorção, é instrumental nas relações humanas? Que garantias epistemológicas teriam ambas as ciências se a mentira não fosse apenas uma questão de subjectividade mas abri-se antes um espaço de indecidibilidade?

Talvez não seja o problema da complexidade do próprio material com que as ciências sociais trabalham que origina as dificuldades de previsão ou as incompletudes no campo da objectividade, mas mais simplesmente a incapacidade de integrar a mentira como estruturante das práticas sociais. Acontece que temos todo um acervo de produção científica que se encontra às avessas com o mundo.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Eu também gostava de ser Boaventura.


Parte dos nossos académicos da área das ciências sociais (e não só) dedica-se a cultivar e nutrir uma raiva mesquinha em relação a BSS. O grande embate do século, nas pequenas capelas académicas do nosso Portugal, parece-me ser o conjunto de comentários acidulados que uma facção do mundo académico vem prodigalizando a BSS. Reportando-nos à mais recente contribuição para esta avançada corrosiva, é interessante verificar como a propósito de um artigo de BSS na Visão, RPP consegue distorcer um argumento a ponto de este passar a servir os seus próprios interesses.

Dizer que o universalismo não pode ser criticado quando este não é efectivo porque é este que proporciona as condições para a crítica é um argumento completamente falacioso; não é só falacioso como também é perigoso. Aplicando a mesma lógica à democracia teríamos: a democracia é inefectiva mas proporciona os princípios necessários para a tornar efectiva, logo não vale a pena tentar modificá-la. O que é que está errado nesta linha argumentativa? É que por vezes as razões da ineficácia não se encontram no conceito, ou na extensão deste (na abstração que é o "universalismo" ou a “democracia), mas sim nos mecanismos que supostamente deviam efectivar esses mesmos conceitos. BSS pode ser convocado enquanto autoridade nesta matéria porque foi ele que introduziu em Portugal, tanto quanto sei, a noção de excesso simbólico. Na altura BSS chegara a conclusão de que Portugal possuia muitas e boas leis, que estaria até avançado em relação a muitos países da Europa; contudo não havia capacidade de as efectivar. Quando BSS refere que os universalismos sempre foram falsos e que estes apenas são accionados quando convém, não há nada de mais cristalino e um olhar que não fosse compactuante com esta versão da crença acrítica no universalismo, que no fundo não é mais do que ideologia pura, não teria dificuldade em aceitar esta afirmação. Haverá exemplo mais claro do que a utilização instrumental dos Direitos Humanos? Não é este o apogeu do universalismo contemporâneo?

Acresce que, o cerne do artigo de BSS é justamente a identificação de dois modos de resposta à ofensa gerada pelas caricaturas. Um informado pela cultura universalista europeia e que por isso gerou um protesto mais contido, e outro que não respeita as regras. Mas o facto de existirem dois contextos simbólicos diferentes onde as reivindicações se inscrevem não dos diz nada da eficácia destas. O universalismo que permite as caricaturas recusou a aplicação da lei anti-blasfémia existente na Dinamarca quando esta foi requerida pela comunidade muçulmana dinamarquesa. É isto que não se compreende: a utilização dos dois pesos e duas medidas, mas que, justamente, revela a manipulação a que o universalismo (neste caso da lei) está as mais das vezes sujeito. Não tem nada a ver com o apoiar do fanatismo islâmico - como sugerem os defensores da liberdade de expressão que utilizam este anátema como arma de arremesso -; prende-se simplesmente com o velho e sábio ditado popular, ou comem todos ou há moralidade.

Um último comentário crítico. Devíamos começar a exigir de RPP que ele mencionasse a paternidade dos conceitos e ideias que utiliza. Apenas dois exemplos que são avonde utilizados: a expressão "excesso de comunitarismo" foi saqueada a Bauman e o famoso conceito de “outrismo” é uma tradução directa de "otherism" cunhado por Tom Burns. O problema não reside na utilização destes termos -eles existem para ser utilizados e como tal são um incremento cognitivo na interpretação dos factos -, mas está na apropriação discricionária desses mesmos termos. E isso roça um pouco a desonestidade intelectual. Desonestidade que sai reforçada quando, ao contrário do que seria esperado, é BSS que utiliza o esquema conceptual do "outrismo" e não RPP que o menciona vezes sem conta, como facilmente se pode verificar pelo excerto seguinte que vale a pena reproduzir in extenso

Verdadeiramente só são caricaturas as que fazemos de nós próprios, ou seja, no seio de uma dada sociedade que se imagina como de pertença comum. É de sua natureza, não serem tomadas literalmente e, portanto, não ofenderem ou não ofenderem ao ponto de quebrar o que temos em comum. As caricaturas que fazemos dos "outros", como não partem da pertença comum, correm sempre o risco de ser tomadas literalmente e ofenderem quem é caricaturado. Quanto maior for a distância entre "nós" e "eles" criada pelos traços da caricatura - por exemplo, os traços de um deus que eles veneram piamente e nós consideramos um fanático terrorista - maior é o risco que tal aconteça. E, quando tal acontece, não se pode esperar que a ofensa seja expressa segundo as nossas regras. Para que tal acontecesse, era preciso que estivéssemos "entre nós", uma condição que as caricaturas começaram por eliminar. Corre-se, aliás, um outro risco: o de a reacção nos caricaturar a nós próprios e nos ofender literalmente (até porque atingidos em pessoas e bens).A contestação gerada pelas caricaturas dinamarquesas veio repor no centro do debate a questão de saber quem somos "nós" e quem são "os outros". Quando há cem anos proliferavam as caricaturas anti-semitas, a reacção dos progressistas, de que hoje nos honramos, era de que os traços das caricaturas sublinhavam que os judeus eram "outros", quando afinal eles eram parte de "nós".

Na minha opinião isto foi a coisa mais inteligente que se escreveu em Portugal sobre as caricaturas.

Considero que RPP tem que viver com pelo menos dois obstáculos intransponíveis: BSS pensa melhor e BSS escreve muito melhor (a segunda é frequentemente o corolário da primeira).

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Curtas

Paradise regained

O aumento dos adeptos do criacionismo nas escolas e universidades quer inglesas quer americanas é um sinal preocupante. Há-os de várias confissões religiosas: Evangelistas, Muçulmanos, Batistas, Jeovás, etc. Parece que um estudo levado a cabo na Inglaterra revelou que a maioria dos estudantes de biologia acreditava no criacionismo e punha em causa o evolucionismo. Nas universidades de M
edicina na mesma Inglaterra, os estudantes islâmicos entretêm-se a distribuir panfletos sobre o criacionismo disseminando a "verdade" segunda a qual deus terá criado o mundo em seis dias - ressalvando, no entanto, que estes seis dias são metafóricos.
No futuro convém pensar duas vezes quando virmos um destes rapazes ou raparigas a empunhar um bisturi.

Pato-logia

Dick Cheney andava aos patos. Num tiro mais canhestro disparou sobre um amigo que com ele andava aos patos. O alvejado, um advogado de renome, foi parar ao hospital. O caso mereceu parragonas em todos os jornais e ocupou jornalistas e opinadores durante uma semana. O climax foi atingido quando Dick Cheney pediu desculpa em directo na Fox e assumiu toda a culpa do incidente. Belo, dramático, poético. Aguardamos as desculpas públicas de Dick Cheney pelas mortes no Iraque.


Sharia assim se deus quisesse
(tem que ser lido com sotaque Visiense)

Quarenta por cento dos Muçulmanos em Inglaterra não vê com maus olhos a implantação da sharia nas áreas em que eles constituem a maioria. A sharia é um sistema complexo de regras decalcadas dos ensinamentos corânicos e possui, entre outras coisas, pérolas como a pena de morte para drogados e passadores reincidentes, prisão para os alcólicos (suspeita-se que foi na Arábia Saudita que nasceram os alcólicos anónimos) e porrada nas mulheres quando estas pisam o risco, i.e., quando o guisado de borrego chega frio à mesa. E ainda a maravilhosa aplicação de uma versão exponenciada da lei de talião onde se prevê a decepação dos bracinhos dos ladrões com o refinamento de se cortar o braço ou a mão que roubou.
Mas a lei que eu mais gosto é aquela que prevê uma aplicação completamente revolucionária da inversão do ónus da prova: em casos de estupro a palavra do homem vale o dobro do testemunho da mulher. Isto é aritmética pura aplicada à ciência jurídica. Assim Alá (a Paz esteja com ele) o queira
.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

A Literatura light e as novas crianças supersónicas



Em resposta à interrogação que Prado Coelho sugere hoje no Público gostaria de contrapor a versão inversa – o lugar do mundo na literatura actual.

Os avatares na conta corrente do mundo assim como nas mundividências que a sustêm possuem efeitos na literatura e hoje mais do que nunca dado que a literatura cedeu (ou tem vindo a ceder) à sofreguidão do grande público e cada vez mais se ajusta a mercados e gostos específicos. A literatura hodierna deixou para trás as fantasias cyborgs e a perda da natureza humana (seja lá o que for) pela irreversível voracidade da máquina. E tão-pouco se debruça sobre o homem que já não consegue reflectir sobre o seu lugar no mundo porque está perdido num universo disconexo de sinais. As fantasias robóticas estavam fascinadas pela ascenção estatutária de que a rendição ao artificial se reveste. Apêndices, conversões genéticas e expansões da capacidade cerebral era o material de que era feito esta nova oratória do super-antropóide. Mas mesmo esta versão futurológica tem vindo paulatinamente a perder adeptos e, como tal, a perder expressão. Em substituição nasce um mundo mítico-encantado de efabulação da descoberta interior. O que encanta os jovens executivos em livros como Harry Potter ou como o Alquimista de Paulo Coelho a ponto de os transportar para um mundo cuja tecitura perde espessura e onde tudo se encontra dentro do coração (forma atabalhoada de inventar um novo sentimentalismo de recorte universal)? Este mundo projecta-os na consciencialização de que os laços de solidariedade com os outros são primeiro, e sobretudo, expressões de solidariedade consigo próprios. Por isso encontramos pessoas absolutamente satisfeitas com o facto de ao estarem a ser boas para elas próprias estarem automaticamente a contribuir para a estruturação da afectividade com os outros. Beleza, forma física, proezas sexuais, enfrentar desafios, são outros tantos nomes que podem substituir esta necessidade urgente de estabelecer conexões com os que “estão de fora” através daquilo que guardamos ciosamente como apenas nosso. Esta derivação da identidade colectiva pelo desvio da identidade do hiper-ego tem um eco imediato nas duas obras anteriormente citadas. A busca infindável do tesouro que o personagem de Paulo Coelho enceta no Alquimista é aqui um exemplo. Após percorrer seca e meca (literalmente) descobre que afinal o tesouro estava na sua própria casa, donde afinal nunca devia ter saído, mas cuja viagem tem pelo menos a vantagem de o ter feito regressar àquilo que estranhamente parecia perdido. Há um regresso a si próprio. O tesouro traz evidentemente vantagens em termos de compreensão do lugar do mundo que ele ocupa; e essa compreensão atinge-se simplesmente olhando para dentro.
Harry Potter segue mais ou menos a mesma linha. Muito já foi dito sobre a justaposição da estrutura ficcional de Harry Potter e a ideologia conservadora da Inglaterra aristocrática. Foi apontado que as escolas de magia não fazem mais do que reproduzir a rígida hierarquia dos colégios privados ingleses e o cerimonial que a sustém. Houve até quem se sentisse renascer ao constatar o regresso aos bons e sólidos valores da dísciplina e da meritocracia. Harry Potter provém de uma família de baixa classe média dos subúrbios de uma qualquer cidade inglesa. Casas geminadas a perder de vista distribuídas por ruas cinzentas e pacatas. A sua ascenção ao mundo da magia não é apenas uma descoberta de novas capacidades sobre-humanas. É também a sua ascenção social aos colégios de elite. A mensagem por detrás das duas ascenções quando combinadas é simples: é necessário ser mais do que humano para ascender à elite. No fundo, ser mais do que humano constitui uma prerrogativa da elite, que por isso permanece no seu lugar indisputável.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Notícias do Novo Mundo

1. Manfred Novack, o relator especial para a tortura das Nações Unidas requereu aos Estados Unidos que lhe fosse possibilitado visitar a prisão de Guantánamo. Os Estados Unidos na sua magnanimidade acederam ao pedido desde que a condição de não contactar com os prisioneiros fosse respeitada. Podemos especular que Manfred Novack iria a Guantánamo basicamente para inspecionar o estuque das paredes, as rachas nas retretes ou o estado geral do pátio. Por conseguinte, os americanos estavam a pensar que da Europa viria um trolha da construção civil visitar a prisão. Novack recusou dizendo em conferência de imprensa que os americanos não usariam a Europa como cobertura para as suas malevolências (há um tipo que ainda não parou de rir na última fila da audiência, enfim...). Entretanto o relatório publicado pelas Nações Unidas foi julgado pelos norteamericanos como não sendo meritório de atenção.

Mas para não pensarmos que os americanos são um bando de gente incivilizada demonstraram-nos a sua urbanidade ao convidarem a Cruz Vermelha -os neutrais suíços que se passeiam com o crucifixo em vermelho- a visitar as instalações. Ocorreu-me imediatamente que também com os campos de concentração na Alemanha Nazi a Cruz Vermelha foi a primeira a lá entrar - e a não reportar o que então por lá acontecia.

2. Para aqueles que pensam que os americanos não planevam há muito um ataque ao Irão é favor ler as seguintes linhas:

The US is to increase funds to Iranian non-governmental bodies that promote democracy, human rights and trade unionism. It began funding such bodies last year for the first time since Washington broke off ties with Iran in 1980. A US official said all existing citizens' groups and non-governmental organisations in Iran had been heavily infiltrated by the Tehran government, so the US would seek to help build new dissident networks.
http://www.guardian.co.uk/iran/story/0,,1710721,00.html

Isto dum país que aprovou o patriotic act e que recentemente o reforçou ao permitir escutas de telemóveis.
We are the hollow men... digo eu.
Fica-nos o prazer de poder brincar com o nosso Bush de estimação aqui. Se ele ficar preso, puxem-no ou dêem-lhe uns safanões que ele desloca-se.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

(Sub)Humanitas aeternitas


Torna-se no entanto evidente que a sub-humanidade pode constituir razão suficiente para uma união de esforços e para um programa comum. A sub-humanidade é aquela que destruiu os contornos da relação abstracta recuperando uma verdade no próprio seio da violência. Aqui sobreviver é mais que sobrevivência. É mais que manter funcional o aparelho biológico, responder aos desejos -dos mais básicos aos mais complexos- e replicar formas simbólicas de os satisfazer. Aqui sobreviver é uma constante do tornar humano; é a consciência lúcida e feroz de que é necessário um esforço adicional para emergir de um estado irreconhecível. A presença quase que implorativa dos leprosos durante a idade média ao passarem pelas cidades habitadas. Um terreno povoado por monstros que habitam as áreas limítrofes do humano. Não nos surgem como extraterrenas as fotografias de Sebastião Salgado? Que mundo é aquele onde os nossos conceitos e matrizes de vida apenas acedem através do dispositivo estético. Que beleza terrível se esconde por detrás desse espaço do inconfessável que nos parece tão distante de qualquer familiaridade, de qualquer probabilidade de identificação que o aceitamos estarrecidos como produção (e inovação) estética? A sub-humanidade.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

A lógica do fantasma


A alegação segundo a qual a separação do ôntico e do ontológico estrutura os debates actuais sobre as potenciais novas formas de organisação social é para ser levada a sério. Um objecto petit a é sempre uma derivação, mas pode ser transformado na “Coisa”. Como? Através de estratégias de criação da imposição hegemónica. É claro que podemos sempre entender o político enquanto decepação dos bracinhos das criancinhas posteriormente empilhados à entrada das aldeias. Mas quanto a mim isto é o resultado de uma interpretação demasiado ortopédica da acção política.

Poder-se-ia acrescentar, que o objecto petit a é, por um erro de paralaxe, uma deslocação de um objecto petit b que imita a Coisa, sendo contudo apenas uma mimetização destorcida do Real conforme este é filtrado pelo espaço que se interpõe entre a própria deslocação e a apropriação negativa do S. Ora isto, parece-nos claro, não é mais do que a negatividade imanente do próprio acto que se esgota no instante ético-político da impossibilidade do reconhecimento do “outro” esvaziando o referencial ético de um exterior que possa ser o locus da identificação dos processos hegemónicos de naturalização. Por conseguinte, ou se joga de acordo com as regras hegemónicas, i.e., ou se constrói uma canoa com os troncos da própria lógica hegemónica, mas que se encontra vedada porque impossível de ser rompida dado que já não existe exterior através do qual o interior possa ser aquilatado – ou se mergulha no nihilismo político advogando que qualquer estratégia ou táctica são inúteis. Ou podemos esperar que Coca-cola nos ajude! Seja como for esta ferida nunca será suturada – e isto é em si mesmo um “acontecimento”.



Foda-se, dêem-nos de comer!

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Fiat na Virgem e não corras




















Ora aqui está um belíssimo exemplo de como a esquerda não deve embarcar nestas discussões sobre a liberdade de expressão de ânimo leve. A coisa era previsível e os argumentos políticos são facilmente reversíveis. Os polacos sairam a terreiro a defender a sua dama, perdão, a sua virgem, porque dama é vernáculo de luso-africanos e normalmente aplica-se a quem não possui grande reputação ou quem não observa religiosamente o manual do bom comportamento e das boas maneiras.

Essa descerebrada publicação chamada Machina (talvez para lhe dar um colorido latino, derivado do latim e não do cabelo seboso e dos ademanes peganhentos tão característico dos povos do sul – isto do ponto de vista de um sueco como eu) resolveu publicar a cara da Madonna envolta no manto da virgem negra de Czeschostowa. Embora o rosto sensual e repleto de promessas de luxúria de Madonna tenha mais impacto do que o assexuado e pungente rosto da virgem polaca na pornotopia em que vivemos, têm razão os polacos por interferirem neste dissenso sobre políticas de identidade. Primeiro, como eles viram imediatamente, trata-se de uma substituição perfeitamente racista: onde dantes se encontrava o rosto moreno da única virgem que passava as férias nas Maldivas encontra-se agora o rosto níveo da estrela do pop que nos deixou, paradoxalmente, esse hino maravilhoso à xenofilia e à capacidade de aceitar o outro na sua otherness conhecido por "beautiful stranger". Segundo, onde antes assomava a virgindade plangente e beatífica da virgem negra, aparece agora a concuspiscência sem redenção da verdadeira anti-virgem do século XXI, mas que, verdade seja dita, ainda manda um pernil de fazer inveja a muita menina do Maxime. Terceiro, a indecorosa substituição - que devemos inserir no contexto das lutas anti-patriarcalismo e na gender equality das feministas – do menino jesus pela filha da anti-virgem que, a julgar pelo aspecto, devia trazer um pequeno Ganesh pendurado ao pescoço.

Pois isto incomoda qualquer pessoa que siga sem relutância os recentes desenvolvimentos no campo do identity politics. Imagino que um homem devoto como César das Neves não vá para a cama descansado e que leve o missal nas suas mãos trementes para a casa de banho pela manhã flagelando-se com as toalhas de linho por uma tal ignomínia. E o que dizer da Alexandra Tété (será a palhaço?) das mulheres pela vida, terá ela sucumbido defronte da ara ao confessar ao divino semelhante opróbrio? Suponho que sim. A subliminar verdade é que todas estas lutas conduzem ao engrossar da “multidão” que vai convergindo para o seu destino imanente: contrariar as estruturas de poder capitalistas. Por isso começam-se a cerrar fileiras e onde antes existiam campos antagónicos perfila-se agora uma união disjuntiva que envolve uma pluralidade de lutas e de reivindicações. O locus do investimento das novas lutas é a caricatura!

Fiat lux.

PS –esperamos ansiosamente que os jornais portugueses começem a publicar a capa da machina para mostrarmos a esses sevandijas dos muçulmanos o que é a liberdade de expressão!

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Vocemecê é que tem sorte – tem uma caixa!

Há uma esquerda em Portugal que é demasiado delicada, profundamente comprometida e bonomicamente instalada. Lê uns blogues internacionais, deixa outros para trás. Excita-se com alguns acontecimentos e cai num sono entropecedor com outros. Passeia a sua jactância cultural pelos abafados corredores da inteligentzia e fica siderada com o fausto das grandes salas de recepção e dos tapetes vermelhos estendidos à porta dos palácios do poder.
Esta esquerda amofinou-se com os atropelos à liberdade de expressão que o Cartoons’ affair instigou a debater. Coitadinhos dos jornalistas e dos cartonistas vítimas dos mafiosos do multiculturalismo e dessa horda de bárbaros -que cada vez se encontra mais dentro da cidade e menos fora das muralhas- que lhes puseram a cabeça a prémio – guinja esta esquerda como saguins aos quais puxaram o rabo. Esta esquerda esquece-se que o partido que governa a Dinamarca é este

















(já repararam como são tão lourinhos) que a senhora que viu consolidada a sua maioria no parlamento após as eleições de 8 de Fevereiro é esta (e perguntamo-nos ingenuamente: terá ela capitalizado com o escândalo das caricaturas?)













Que o partido que esta senhora governa é assumidamente de extrema-direita e que se chama Partido do Povo Dinamarquês.
Que este senhora tem escrito abundantemente contra o Islão e contra as comunidades muçulmanas na Dinamarca que por ela é governada.

The leader of the Danish People's Party, Pia Kjaersgaard, responded to Swedish criticism by saying: "If they want to turn Stockholm, Gothenburg or Malmoe into a Scandinavian Beirut, with clan wars, honour killings and gang rapes, let them do it. We can always put a barrier on the Oeresund Bridge."

(Para quem pensa que as citações reproduzidas acima foram proferidas como resposta aos protestos do mundo árabe está enganado. Estas afirmações foram feitas após um protesto sueco relativamente ao êxodo de dinamarqueses com conjuges estrangeiros em direcção às cidades suecas do sul.)

Que as relações entre o Jyllands-Posten e este partido são mais do que fortuitas e que as caricaturas foram o resultado de um concurso, logo escolhidas criteriosamente.

E que a Dinamarca, desde que este partido faz parte do governo (2002) adoptou a política migratória mais restritiva da Europa (que já tem políticas restritivas). Que aboliu a possibilidade de asilo por razões humanitárias estabelecendo apenas critérios mínimos concordantes com a Convenção de Genebra sobre refugiados. Que impôs o período mais alargado da Europa dos 15 em relação à reunificação familiar e obriga os cidadãos dinamarqueses a provarem que possuem laços mais fortes com a Dinamarca do que com qualquer outro país.

Há ceguinhos que nem sequer uma caixa de esmolas merecem.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Somos todos muçulmanos!

A polémica gerada pelas caricaturas de Maomé publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten possui contornos interessantes em que vale a pena reflectir e que são pela sua própria natureza absolutamente marginais à discussão da liberdade de expressão.

Primeiro, a aparente razão da raiva. Como é sabido o Islão não permite qualquer forma de representação dos seus profetas (não apenas de Maomé) sob pena de se cair no pecado de idolatria. Por conseguinte, logo ao nível da simples representação temos um potencial caso de descontentamento religioso e comunitário. Acresce que Maomé é apenas um dos profetas do Islão –apesar de ser o mais perfeito de todos eles, portanto o que está mais perto de deus, e aquele que unificou as tribos árabes fundando o “mundo islâmico”- sendo que quer Jesus quer Maria, que o precedem, são igualmente considerados profetas do Islamismo. Ao caricaturar Maomé o jornal sabia perfeitamente o que estava a fazer; por isso não caricaturou Jesus ou Maria, mas podia tê-lo feito igualmente. Portanto logo aqui se indicia um elemento de premeditação na acção do jornal. A divisão é evidente: onde não seria bem vista, na Luterana Dinamarca, caricaturas de Jesus, não há problema nenhum em caricaturar Maomé. E na verdade o jornal recusou, no passado, publicar caricaturas de Jesus. As desculpas publicadas são sobretudo efeito do medo e não da reconsideração do acto.

Segundo, a postura do Jornal. Trata-se de um jornal conservador com longo historial de intervenções anti-imigração, em particular contra a comunidade muçulmana a viver na Dinamarca. As 12 caricaturas possuem, todas elas, uma mensagem derrogatória para a religião Islâmica equacionando a figura de Maomé com violência, ódio, opressão e terrorismo. Que os muçulmanos sejam assim vistos não autoriza a representar a sua principal figura religiosa da mesma maneira. Portanto parece existir uma consistência latente no trabalho dos caricaturistas que um semiótico greimassiano não teria dificuldade em classificar como uma isotopia.
Nestes casos, é sempre interessante tentar o exercício de nos colocarmos no lugar dos outros seguindo a prática do looking-glass self. Imaginemos que são publicadas 12 caricaturas sobre a religião católica e que todas sem excepção representam a virgem em posições sexualmente chocantes. Qual seria a reacção da comunidade católica internacional? Não é preciso ir muito longe; é suficiente relembrar o caso do Papa com o preservativo no nariz para perceber que o paralelismo não é assim tão rebuscado. Na altura a Igreja saiu em defesa da sua congregação de fiéis e decretou autocraticamente que tais intervenções jornalísticas eram inadmissíveis. Que me lembre nenhum dos outros jornais repetiu a publicação dessa mesma caricatura iniciando assim uma reacção em cadeia, supostamente, pela liberdade de expressão.

Dito isto, há manifestamente uma correlação de interesses políticos no mundo Islâmico que visa deliberadamente intensificar o conflito.
Numa manifestação no Iemen as mulheres sairam à rua em protesto pela publicação das caricaturas. Tratou-se de uma manifestação pacífica cuja intenção foi mostrar incredulidade perante o que estava a acontecer. Estas mulheres não compreendiam o porquê da ofensa e decidiram retaliar boicotando os produtos dinamarqueses. Contudo, a maneira como a dimensão dos protestos ganhou expressão e como se tornou num rastilho para acções guerrilheiras não se deve apenas a motivos religiosos.
Penso que é necessário não desvincular os protestos e a sua intensidade da ameaça iminente de um ataque ao Irão (será mera coincidência que as reacções tivessem sido proteladas durante quatro meses?). A reacção dos Muçulmanos porventura decorre do facto de mais uma vez se sentirem subjugados pelas potências ocidentais. Se bem que é conveniente evitar a reedição do discurso do Grande Satan, é também necessário manter em perspectiva que se trata de uma comunidade que se sente desrespeitada na Europa, oprimida pelos Estados Unidos e à beira de ver mais um dos seus bastiões esmagado pela coligação internacional. Não é verdade que Dick Cheney declarou recentemente que a intervenção militar no Irão estava a ser considerada? Não admira portanto que os líderes dos países árabes se tenham afadigado a atear o fogo. No Egipto interessa a Mubarak ganhar as eleições; na Síria, este incidente foi utilizado para inflamar reacções nacionalistas e muito pouco foi feito para evitar o ataque à embaixada da Dinamarca em Damasco. Na Arábia Saudita o acontecimento está a ser manipulado pelo regime de tal forma que houve um conluiu entre mesquitas no sentido de incluir nas preces um ataque aos dinamarqueses. E há também o curioso pormenor da proliferação das bandeiras da Dinamarca que de repente são mais fáceis de encontrar nos países árabes do que a bandeira do Benfica à porta da Luz em noites de derbi. Foi também noticiado que um dos Imans da Confederação da Dinamarca acrescentou (terá sido descuido?) uma décima terceira caricatura, ainda mais ofensiva, às 12 já publicadas. Por tudo isto as motivações políticas são indesmentíveis. Porém, quer isto dizer que devemos desvirtuar os acontecimentos e tomá-los como reacção de uma turba de fascínoras incontrolável? Pelo contrário. Se alguma coisa as reacções muçulmanas nos ensinam é que é preciso recorrer a métodos mais convincentes que quebrem a serenidade amodorrada da discussão da liberdade de expressão ou o consenso serôdeo do jogo dos grupos de pressão. Arrisco a considerá-los um verdadeiro acto político, no sentido que lhe empresta Schischec ou Badiou – um acto que mude as regras do jogo, de uma tal violência que os posicionamentos políticos anteriores não possam mais ser vistos segundo o antigo paradigma. Os muçulmanos sabem que estão a ser enganados; reconhecem a suprema hipocrisia e cinismo dos USA que se apressaram a mostrar-se solidários com os manifestantes e os protestos enquanto gizam um plano para invadir o Irão; sabem também que os media não são propriamente exemplares no que toca à liberdade de expressão e que a capacidade de os influenciar é assimétrica; sabem que a Europa segue a locomotiva norteamericana interessada que está em ver os seus projectos neo-imperialistas levados a bom termo e em mostrar que ainda conta no xadrez mundial. O efeito perverso destas acções é que vão acelerar o ataque ao Irão assim como fazer engrossar as fileiras daqueles que o justificam; não por acaso a direita evangélica norteamericana foi tão efusiva na defesa dos direitos religiosos. Mais uma vez as posições americanas são bafejadas por um consenso ideológico talhado à medida dos seus intentos belicistas. Por isso se revolta o mundo árabe: contra a impotência, contra a mascarada dos processos negociais, contra a instrumentalização das organizações internacionais e contra a exploração de que são vítimas quer pelos regimes corruptos que os governam quer pelas potências ocidentais que suportam estes regimes. Resulta portanto que a ilação a tirar é que por vezes é preciso partir a loiça.

Fica contudo uma ironia de antologia: é que a Dinamarca aprovou recentemente uma lei em que pune a queima de bandeiras nacionais. Vive la politique!

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Les français de souche!

Num artigo muito interessante que Daniel Cohen escreveu para o Le Monde encontra-se exposto o nó górdio que despoletou a violência nos banlieus franceses o ano passado. Segundo o autor é errado procurar causas culturais para os protestos, porque o que realmente se encontra subjacente é uma elevadíssima taxa de desemprego dos jovens das cités (que ronda os 40%) e a incapacidade, percepcionada como absolutamente inexorável por estes jovens, de reverter esta situação de desvantagem. Digamos, portanto, que as causas são antes de mais estruturais. Até aqui nada de novo. Muito foi dito sobre isto por diversos sectores e pelas mais diversas personalidades. O que me surge como inovador nesta abordagem é o facto de Daniel Cohen inverter o argumento segundo o qual se trata sobretudo de actos gerados por solidariedades fechadas, entrincheiradas no seu próprio mundo que se autoalimentam e reagem agressivamente ao exterior. Com efeito, na opinião de Cohen passa-se exactamente o contrário. Recorrendo à tipologia de Bruno Amable sobre os cinco tipos de capitalismo mundial, Cohen classifica a França como fazendo parte do “capitalismo mediterrânico”. Este conceito é fac simile da noção de “sociedade providência” que Boaventura aplicou à largos anos ao caso português. O que caracteriza quer uma quer outra é que ao contrário do Estado-providência escandinavo, no qual os excluídos são integrados pelo Estado, e ao contrário do capitalismo anglo-saxónico, em que se espera que seja o mercado a resolver o problema, no capitalismo mediterrânico são sobretudo as redes de solidariedade familiares que são activadas para palear a exclusão. Ora acontece que se os efeitos desestruturadores do desemprego são contidos pelas solidariedades familiares na população em geral, para os jovens dos banlieus eles são devastadores. E a razão é que estes jovens encontram-se privados da solidariedade intrafamiliar que faz com que os outros jovens não caiam numa situação de desprotecção completa. Na medida em que a segunda geração de imigrantes a viver presentemente nos banlieus é a grande perdedora na reconversão neoliberal aos mecanismos de mercado (com a perda dos trabalhos na indústria, com a deslocalização das grandes manufacturas, com a eleminação dos subsídios estatais, etc) não pode servir de suporte à terceira geração. Consequentemente, os jovens das cités estão bloqueados e não possuem os mesmos recursos sociais (redes de entreajuda familiares, por exemplo) a que os outros jovens têm acesso. Por conseguinte há uma situação de exclusão específica a estes aglomerados urbanos que combina desvantagens estruturais com falta de redes familiares de apoio; ou seja, não há lugar para a sociedade providência.

O que importa relevar nesta explicação algo esquemática é que se quisermos procurar as causas no ethos destas comunidades vamos pelo caminho errado. Muito menos na ideia de uma sublevação do radicalismo islâmico que estaria a estender os seus tentáculos ao interior das conurbações europeias. É também avisado cogitar um pouco nestas ideias para todos aqueles que se atarefam a cismar por que razão os portugueses são tão bem comportados em França e os originários do Norte de África parecem recusar a integração. Normalmente este tipo de questionamento procura respostas rapidamente assimiláveis no ethos das comunidades e assim se constrói um ranking de ethos comunitários que tem por função ideológica estigmatizar alguns grupos em relação a outros.

Vem a este propósito os trabalhos levados a cabo em Portugal, e que já foram aqui mencionados, sobre a empresarialidade imigrante. Quando se mostra, tautologicamente, que os africanos são os últimos no ranking da empresarialidade esta mensagem não pode ser encarada como fazendo parte da inocência académica da liberdade de investigação. Num mundo em que a linguagem da performance e do sucesso constitui um novo esperanto classificar grupos de acordo com os desempenhos empresariais, de acordo com o empreendorismo, rescende a um incómodo e subliminar eugenismo. Não significa que se vá recorrer a uma limpeza étnica, ninguém pretende aventar essa absurda possibilidade. Mas significa que uma tal descrição e posicionamento dos grupos tem certamente consequências na forma como se constroem os preconceitos grupais.
A experiência francesa parece não nos ter ensinado nada. Esperemos que as ilações a tirar não venham demasiado tarde. Ou estaremos nós empenhados a criar a nossa versão caseira do “português de souche”?

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

O Sétimo de Cavalaria

(if you’re not with us, you are against us)

Iraq 2003 –Discurso presidencial à nação (antes da invasão do Iraque)

Our nation and the world must learn the lessons of the Korean Peninsula and not allow an even greater threat to rise up in Iraq. A brutal dictator, with a history of reckless aggression, with ties to terrorism, with great potential wealth will not be permitted to dominate a vital region and threaten the United States.
(…)
And tonight I have a message for the brave and oppressed people of Iraq: Your enemy is not surrounding your country, your enemy is ruling your country.
And the day he and his regime are removed from power will be the day of your liberation.

Iran 2006 – Discurso presidencial à nação (antes...)

The same is true of Iran, a nation now held hostage by a small clerical elite that is isolating and repressing its people. The regime in that country sponsors terrorists in the Palestinian territories and in Lebanon, and that must come to an end. The Iranian government is defying the world with its nuclear ambitions, and the nations of the world must not permit the Iranian regime to gain nuclear weapons. America will continue to rally the world to confront these threats.

Tonight, let me speak directly to the citizens of Iran. America respects you, and we respect your country. We respect your right to choose your own future and win your own freedom. And our nation hopes one day to be the closest of friends with a free and democratic Iran.