Tres pensamientos inimportantes
Figlio imPRODIgo
Berlusconi avança depois dos impropérios e das boçalidades proferidas por ele e por velhos amigos da coligação. Prodi ganha as eleições, mas não deixa de ser notável quão frágil é a sua coligação e quão patético é o voto de confiança dado novamente a Berlusconi por metade do povo italiano Seja como for estas eleições provam que o povo italiano é estúpido, desinformado e intoxicado pela imagem de marca Forza Italia. Provam estas como demonstram as eleições portuguesas que deram a vitória a Cavaco ou as americanas que elegeram macivamente um carniceiro como Bush. Outras imagens de marca, outros povos, outra desinformação, a mesma intoxicação.
Berlusconi teve o requinte artificioso de mudar as regras eleitorais antes do acontecimento. Atempadamente o fez e da mesma maneira colhe os frutos deixando a mais escassa margem entre o vencedor e o vencido da história da democracia Italiana -se é que se pode falar de um vencido. A ambição decadente de se autoperpetuar, um pouco ao estilo dos imperadores romanos, faz de Berlusconi o exemplo mais ilustrativo dos perigos a que a democracia está sujeita. Actualmente é fácil admitir que a democracia não funciona. Na crise de legitimidade ela não funcionava porque não representava os interesses de todos os que pertenciam à sua circuncrição. Agora ela deixa de ser credível mesmo quanto ao próprio mecanismo redistributivo. Depois das últimas eleições americanas e das eleições italianas é difícil perceber o que diz o povo quando este fala. Provavelmente não diz rigorosamente nada; e àqueles que dizem é-lhes a voz abafada pelo ruído insuportável desta multidão dessultória e irresponsável. Sim, é para aí que eu me inclino: a irresponsabilidade democrática é um dos maiores perigos das democracias contemporâneas. Bem sei que isto sugere os pensamentos de antanho dos conservadores nos primórdios da democracia. A multidão ingovernável que colocava em perigo a regência e as leis. Todavia, não podemos deixar de equacionar a irresponsabilidade eleitoral com as perversões da democracia. Será que a democracia fez um bom serviço ao eleger Bush nos Estados Unidos ou ao dar duas vitórias e uma quase vitória a Berlusconi? Tudo leva a crer que não; e no entanto são resultados legítimos decorrentes da voz do povo. Pois eu digo que a voz do povo já não conta para nada. O povo quando fala ou é com voz roufenha e imperceptível ou esganiçadamente e muitas das vezes só diz disparates. O povo que elegeu Bush ou Berlusconi não me merece respeito; tenho por ele somente temor.
Montanhismo
O texto de Montaigne sobre a amizade é uma das mais belas tentativas de encerrar em palavras esse sentimento etéreo a que se convencionou chamar amizade. Etéreo porque é isso que se depreende das palavras de Montaigne e é também isso que nos contagia ao lê-lo: a amizade enquanto amor inclassificável. Sentimento perturbante que nos enlevando nos faz simultaneamente querer ficar presos à terra. O mais telúrico dos sentimentos, descrevo-o na sua infalibilidade, e se ela por vezes se trai ou falha na sua própria revelação é porque não era verdadeira amizade, como nos ensina Montaigne. A amizade não tem trocas nem sacrifícios. Quando Montaigne se interroga sobre a razão de amar um amigo só lhe ocorre o sentimento mais puro e verdadeiro para expressar o que afinal se encontra inamovível: Parce que c’était lui; parce que c’était moi.
Leio-o sempre com um prazer inexcedível, na certeza porém de que a amizade é um resquício da antiguidade clássica, uma ruína, que hoje em dia só se encontra sob a forma de palimpsesto.
Mexiofobia
Vi por entreposta pessoa, vi com estes que a terra há-de comer, se a tanto se lhe oferecer palato e disposição, o que diz o Mexia sobre a literatura. E este rapaz que sempre me ofuscou com as suas tiradas flamejantes e os seus pensamentos relampejantes, diz agora que a literatura se baseia na fantasia. Pedra angular de todo o saber – diríamos ainda com Bloom “where shall wisdom be found”, bom aqui não é com certeza -, a velha questão de saber se é a vida que imita a literatura ou a literatura que imita a vida é de novo resgatada e desta feita por mão de mestre. Ars longa vita brevis, portanto. Responde o plumitivo “muita da grande literatura nasceu da imaginação ou da fantasia (...) muitos escritores, nomeadamente dos géneros mais radicais, não viveram nada do que escreveram”. Dei comigo a pensar se isto não seria uma fraude mais disseminada do que parece a priori. Questões importantes revolveram-se-me no cérebro: terá a Ana Faria vivido tudo aquilo com os queijinhos frescos? Será que o Luís nunca foi a Paris e em vez disso foi ao Barreiro? Será que Ana com a sua imaginação faiscante transformou as gruas da Lisnave no austero e geométrico desenho da torre eifel? Tantas questões que ficam sem resposta, suspensas nessa dobra mal definida entre a vida e o literário.
Mais à frente jura Mexia que Sade “terá sido razoavelmente libertino, mas nada que se compare aos infernos sexuais que deixou associados ao seu nome”. Aqui temos que reconhecer que a fleuma e despreocupação que Mexia denota ao referir-se às perversões de Sade só nos podem merecer admiração. Para Mexia as coisitas do Sade sabem a uma razoável libertinagem porque comparado com ele, sugerimos, Sade foi um debutante. Sempre atormentou a jovem direita intelectual que Sade pudesse de facto ter sido o perverso violento e maníaco que deixa entrever nos seus textos. Mas na verdade foi mesmo; embora custe saber que houve um gajo que além de escrever a levou bem vivida –se descontarmos as inúmeras vezes em que ele foi bater com os costados na Bastilha.
Por fim, Mexia remata com frase inspirada que “escrever é uma modalidade de viagem, e é natural que queiramos viajar por sítios onde nunca fomos”. Principalmente se andarmos à boleia.
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