O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

quinta-feira, março 23, 2006

Está a brincar, Sr. Bruno?

1. A estupefacção do Bruno deixa-me perplexo. O que será que o Bruno não entendeu no meu texto? Numa primeira análise, nada. Isto coloca-me um conjunto de questões deveras sério: estarei eu a escrever de forma tão abstrusa que não se entenda nada? Serão os meus argumentos tão mal construídos que se possa falhar por completo o cerne do problema? Questões com as quais me tenho que confrontar num esforço auto-reflexivo.

2. O problema é o conceito de "reificação" - o que é que reifica? Mas aqui a questão coloca-se justamente no prório mecanismo que supostamente reifica as minorias, i.e., as estatísticas. É a propósito das consequências deste mecanismo que eu faço o meu comentário e não da existência de categorização o que seria completamente absurdo. Ou admitimos que um grupo nem sempre é reificado ou supomos que um grupo é sempre reificado, se assim for então à que explicar por que razão a categorização estatística reifica.


Reificação é o processo de considerar algo (neste caso um grupo) como se fosse uma coisa. Em termos marxistas é a transformação de substâncias em mercadorias. Seja como for é sempre a coisificação, a objectivação; e no caso dos processos de racialização consubstancia-se na naturalização de um grupo. O termo “racialização” é o conceito chave aqui. Como diz o Bruno (e eu estou longe de discordar) o racismo opera através de uma categorização que é investida de valor negativo. Discordo em absoluto que o racismo possa ser investido de valor positivo. Este é simplesmente o argumento dos sectores conservadores - o famoso: “mas eles também são racistas em relação aos brancos” - ou o argumento primário contra o multiculturalismo - "se os encerrarmos nas suas identidades ainda se tornam mais racistas em relação à sociedade de acolhimento" pela simples razão que o racismo opera numa estrutura de desigualdade de recursos – sejam eles simbólicos, económicos, políticos ou sociais. Para que o termo racismo possua um potencial heurístico tem que definir os seus próprios limites.

Não será por acaso que RPP desalojou o conceito de "racialização" pelo bem menos evidente e mais acéptico "outrismo". Contudo, nunca RPP explicou qual é a especificidade do outrismo baseado na “raça”. Na medida em que o outrismo é sempre a enunciação (e exclusão) de um "outro", com a consequente criação de uma oposição friend/foe resultante da própria estrutura da relação, convinha saber por que razão se pode este alicerçar na "raça", no fenotipo enquanto marcador racial. O "outrismo" engloba qualquer relação social deste tipo (pode, por exemplo, ocorrer numa relação construída segundo a oposição bonitos/feios ou ricos/pobres ou qualquer relação que construa uma colectividade, mesmo que imaginariamente, através dos mecanismos da exclusão) a sua especificidade no que toca ao racismo nunca é explicitada por RPP. Ficamos assim com um conceito que serve para tudo e, como no velho paradoxo filosófico, não serve para nada.

3. O Bruno convoca, evidentemente, a definição de Miles. Mas fico estupefacto com o desconhecimento que ele mostra possuir da teoria da racialização. E sinceramente não vejo onde ele me contradiz. Estamos de acordo com a categorização, mas não é este um processo de reificação? Não era Franz Fanon que dizia que a categoria "branco" só existia por oposição à categoria "negro" enquando incorporadora do "mal"? Não era justamente a coisificação da consciência dos negros que os encerrava numa categoria inferior? Eventualmente houve alguma confusão com a minha alusão à "classe para si". Há dois níveis de argumentação no post. Por um lado, e este é o fulcro do post, a reificação pré-existe à categorização estatística - nisso parece que o Bruno está de acordo. Donde se torna inverosímel dizer que as categorias estatísticas reificam o que afinal pelo próprio processo de categorização se encontra já reificado. Por outro lado, não só os grupos já se econtram reificados como a categorização étnica pode, em larga medida, gerar um efeito político. Daí o exemplo dos negros norteamericanos. O paraleo com a classe para si servia para ilustrar este ponto. Tal como a Klasse fur sich, somente quando o grupo étnico toma consciência que existe numa posição desigual e que é alvo de objectivação do seu fenotipo se pode este tornar actor político. Uma tal condição não surge necessariamente da posição de classe (ou apenas da posição de classe); envolve as mais das vezes empreendedores políticos, tais como líderes carismáticos ou pessoas colocadas em lugares estratégicos na relação de forças que se estabelece entre minoria e maioria. Este é, a meu ver, o salto qualitativo que é dado quando se assume a posição de interlocutor político. Por conseguinte, perguntava-me se não será o receio de uma emergência política dos grupos étnicos que condiciona o pensamento sobre o racismo e força ao apagamento dos processos de racialização pela sociedade portuguesa.

Nunca eu disse que apenas em casos de exploração de classe tal fenómeno acontecia, desde logo porque menciono o caso do anti-semitismo nazi onde obviamente o modelo da dialéctica das classes não pode ser aplicado. Contudo, não deixa de persistir a desigualdade: não eram os judeus definidos pelos seus atributos infra-humanos? Não é o anti-semitismo organizado através do pressuposto de que os judeus eram o elemento impuro da comunidade? O nazismo traduziu e elevou essa impureza, esse elemento poluidor, numa somatização do judeu. Embora esta já existisse anteriormente, passava doravante a alicerçar-se no conhecimento científico que elegeu a antropometria como forma de classificar, e portanto reificar, a (des)humanidade do judeu.

4. Finalmente, fiquei eu e ficámos todos sem saber o que pensa o Bruno sobre as categorias estatísticas e sobre o argumento segundo o qual o efeito destas seria a reificação. Isto era mais importante do que insistir em verdades de Lapalice como a do racismo operar através de categorizações. Ficamos na ignorância como ficámos sem saber por que razão gostava o Bruno do Zizek. Tudo a bem do espírito dialéctico.

1 Comments:

  • At 12:57 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    Já pensaram em que é que se transformou este blog? Parece coincidência mas, desde que o Cavaco ganhou as eleições, isto parece mais um monólogo do que um fórum de debate e reflexão...

     

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