O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Os pós e as contas

Comentários fragmentários ao último prós e contras (a propósito de coisas memoráveis) suscitados pela reflexão, que ficou pendente, do Filipe.

Os fanáticos da meritocracia

Não há condições abstractas para o exercício da meritocracia. É uma fantasia (perigosa ) pensar que a meritocracia possui um grau zero pelo qual se pode aferir o mérito genuíno. O mérito é somente o resultado de diferenças historicamente acumuladas. A meritocracia premeia aqueles que já partem de uma posição privilegiada. Não é, como tal, o putativo sistema de justiça pura e equitativa. É somente um sistema de reprodução da desigualdade. A defesa encarniçada da meritocracia parte sempre daqueles que não questionam a desigualdade; daqueles para os quais a desigualdade se afigura inscrita na natureza das coisas ou daqueles que mais beneficiam da distribuição de privilégios. Esta defesa do premiar os diferenciais de desempenho esconde, pura e simplesmente, uma defesa intransigente do status quo. Essa é a face de Janus da meritocracia.

Boaventura

Confesso que fiquei desiludido com a prestação de Boaventura. Falar de contrato para uma nova democracia naquilo que me parece ser uma época pós-contratual cheira-me a contra-senso. Dizer que a globalização está desregulada e pugnar pelo alargamento do comércio livre parece-me incoerente (o próprio Pacheco Pereira que é lesto e ladino não o compreendeu). Contrapor à ideia segundo a qual os portugueses se resignavam perante a desigualdade a noção de que éramos um país de protestos e de radical insatisfação (sim, protestos há muitos – mas qual é a natureza desses protestos?) é no mínimo mistificador. Um país onde as pessoas se derretem em louvaminhas ao poder e aos poderosos; onde o sr. Doutor se pronuncia com um ar de submissão e reverência que roça a vassalagem de outrora; onde as pessoas são aviltadas e desprezadas nos seus locais de trabalho sem terem possibilidade de protestar ou sequer activar processos que dignifiquem a sua condição enquanto trabalhadores (basta lembrar a capciosa prática de descontar no salário as idas à casinha – qualquer coisa entre o mais vil terceiro mundismo e o simples despotismo esclavagista); um país onde a precaridade é um mote e o verbo “descartar” é declinado com a impudícia coquete de uma meretriz da alta não me parece corresponder ao retrato de radical sublevação traçado pelo sociólogo de Coimbra. Significa portanto que os protestos caiem, como se diz em linguagem popular, em saco roto. Sim, protestos há muitos (como os chapéus) não existem é estruturas de oportunidade para os efectivar.

O valor acrescentado

E o que dizer da belíssima ideia de Miguel Portas de apostar no valor acrescentado? Pouco difere do que dizia precisamente o relatório Portes há mais de 10 anos atrás (será mais que coincidência fonética?). E o sector, digamo-lo temerariamente, era também o têxtil! Recordo uma vez que ouvi Louçã a explicar brilhantemente as razões pelas quais o modelo de desenvolvimento baseado em salários baixos era uma falácia. Recordo-lhe o brilhantismo, mas não os termos em que expendeu as suas considerações. Seja como for havia uma explicação, de teor económico, que podia servir de cartilha para estas ocasiões. Por que razão não nos explicou Miguel Portas seguindo as pisadas do mestre e recorreu antes à infame teoria do valor acrescentado (nem tudo se pode transformar no Piamonte por obra e graça do espírito santo)? Quando a esquerda se encontra com os gurus da gestão então o mundo está finalmente unido.

Fátima

Mas não há quem a “estrafegue”?