O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

quinta-feira, abril 06, 2006

Oni soi qui mal y pense.

OK – regressei. Peregrinei pelo deserto, comi gafanhotos e escolopendras, preveni-me de um diário de asceta e agora volto em gesto epifânico, eventualmente última aparição de alma humana neste blogue em lento estiolar.

A razão do meu regresso tem o seu quê de religioso, pois move-se pelo mesmo ódio que só os verdadeiros fiéis podem dirigir contra os falsos prosélitos. O meu ódio (e talvez ódio seja uma palavra demasiado forte; substitua-mo-la então por desespero), o meu desespero perante a negação do pensamento, a subversão da ideia, a emasculação do raciocínio. Este sentimento que me assola logo pela manhã, ganha corpo no correr da tarde e floresce como uma gangrena lá pela noitinha resume-se a uma palavra: o canhoto. Este blogue enerva-me. Por conseguinte, reapareci para partilhar com o mundo os últimos dislates e inanidades de que por lá se faz eco.

Diz-se “laico não é qualificativo de cidadão”

Absurda porque “laico” não é qualificativo de cidadão (como não o são, também, por exemplo, “quente”, “caudaloso” ou “frondoso”). Laico é qualificativo de Estado e significa neutralidade religiosa do mesmo para que todos os cidadãos possam usufruir não só de liberdade religiosa mas também de liberdade em relação à religião.

Cum caneco e eu a julgar que eles tinham apoiado um que se diz laico e republicano. Era afinal o Estado aquilo de que ele se reclamava? A incorporação do Estado na pessoa do candidato como a dupla pessoa do Rei? E se só o Estado é laico (mas poderá também ser quente e frondoso? E por que não?) o que se dirá então de um cidadão que acredita que o estado deve ser laico e não religioso? Será um “lacão”? Não, talvez um liberal. Mas há liberais que não são laicos e não deixam por isso de ser liberais. Ou não?

O conceito de laicismo: um Estado que tolera diversas religiões - diz resumidamente RPP. Mas será? O problema é que o laicismo foi desvirtuado. Ele é a França a reclamar-se de um Estado laico. Ele é Soares a dizer que é laico e republicano. Ele é a discussão sobre a constituição europeia que pende entre reconhecer a herança cristã (a bom porto chegaríamos se reconhecessemos igualmente a muçulmana) e assumir-se como laica. E a multiplicidade de vulgarizações do laicismo vai surtindo os seus efeitos e calando fundo. Só o Estado é laico porque tolera diferentes religiões, e por isso se considera...democrático e liberal. Pena é que o elemento importante desta equação tenha desaparecido: precisamente, o cidadão laico. Porque este não é apenas o que tolera; na verdade se alguma coisa corresponde ao laicismo é o movimento contrário, o de rejeitar esse pathos tolerante que se alicerça na transcendência. O laico pugna contra o dogma, rejeita a ideia segundo a qual a fé se firma neste último e portanto é ininterpelável, toma uma posição de escrutínio perante a justaposição entre lei religiosa e humana e interroga a religião quanto ao seu cerne – a lógica salvífica. Por conseguinte, ser laico é antes de tudo o mais assumir uma posição crítica perante a(s) Igreja(s) e a(s) sua(s) doutrina(s). Na dicussão sobre a laicidade do Estado evacuou-se esta preocupação que foi substituída, higienicamente, pela ideia de tolerância. Não serão estes apagamentos o sinal óbvio de “fascismo social”? A Igreja convive com um Estado laico na premissa de que este se atém a aceitá-la e a não definir o lugar da religião na comunidade, mas é-lhe impensável viver com uma comunidade de cidadãos laicos que passam as suas doutrinas pelo crivo da racionalidade. Ora, este binómio é constituite dos dois planos diferentes de assunção do laicismo. Parece que ser laico é abençoar todos os cultos, quando na verdade ser laico é não abençoar nenhum.

Deparo-me mais acima com a verrina costumeira dedicada a Boaventura. Já disse e repito: não concordo com muita coisa que o Boaventura diz, mas se quiser divulgar as minhas opiniões sobre ele é bom que vá munido com algo mais do que dixotes e leituras caseiras. RPP compara Boaventura a Manuel Alegre quanto à sua irresponsabilidade. Ora, só isto já é exemplo suficiente de irresponsabilidade. Parece que Alegre comparou a situação actual do Portugal contemporâneo com o fascismo de Salazar. E logo isto deu azo a acusação por parte do canhoto de irresponsabilidade; e porque não se podia deixar passar um coelho sem canhoar o outro, lá se trouxe o Boaventura à colação para criticar a expressão, também ela irresponsável, “fascismo social”.

Comparar com a inquisição será branquear a mesma? E comparar com o despotismo iluminado será incensar este? Nestas comparações a que se aplicou o ferrete do não-dito parece que o que se encontra verdadeiramente subjacente é um princípio de salvação quer do objecto comparado quer da instância utilizada para a comparação. Este raciocínio de benevolência anémica e retrospectiva deve ser deliberadamente rejeitado. Não se pode comparar com o holocausto porque é diminuir o horror que este representou. Mas perante este imperativo categório o que se salva é o holocausto pela simples razão de que a comparação é dessacralizante. Não é verdade que na teologia clássica nada pode ser comparado com Deus? E não é justamente esta impossibilidade que lhe outorga a condição de absoluto? Estamos numa fronteira muito perigosa. O que tem acontecido com esta proibição instituída de comparar “com” o holocausto, senão a sacralização do mesmo. Não é o problema da sua minorização que preocupa os Judeus; é antes o medo da dessacralização: apenas um acontecimento divino na sua proporção poderia levar a uma terra prometida por um deus. Fecha-se o círculo: a sacralização do holocausto é absolutamente instrumental para o mito do regresso do povo judeu.

Ressalvadas as distâncias é difícil não perceber que este abafamento das comparações com o fascismo pode ser interpretado da mesma forma. A anulação do fascismo como objecto de comparação revela o mesmo empenho em sacralizar um momento histórico. Nem tão-pouco se compreende porque é que a utilização do termo fascismo apenas remete para o salazarismo que é o que se depreende da comparação –certamente inusitada- entre o desabafo de Alegre e o conceito de Boaventura. Esta visão redutora que presentifica o fascismo enquanto memória de um regime esquece por completo que o fascismo foi e é um conjunto de práticas. Da mesma forma o totalitarismo não pode ser reduzido ao estalinismo, embora através deste possa ser historicamente sinalizado. Se assim é, qual a razão para dizer que o “fascismo social” é apenas uma metáfora e não um conceito? (havia que discutir esta distinção singular, pois as fronteiras entre os dois termos estão longe de ser claras e muito menos de serem facilmente operacionalizadas, mas isso levar-nos-ia a uma deriva por outras paragens). Ao contrário do que diz RPP, se quisermos ser objectivos, é justamente o termo fascismo social que nos ajuda a estabelecer uma correspondência entre traços de regimes fascistas e práticas actuais que podem ser identificadas como tal. Se mais não fosse preciso, bastava ler o artigo do Guardian sobre as universidades americanas (que é citado no canhas) para perceber que se assiste a um reinvestimento em práticas que podemos sem grande rebuço considerar como propriamente fascistas. Estaremos a desvalorizar o conceito ao utilizá-lo num outro contexto historico-social? Pelo contrário, se alguma coisa, estamos a reactualizá-lo para nomear “coisas” que dificilmente podem ser nomeadas dentro do quadro da democracia. Não é apenas o silenciamento das práticas é também o silenciamento da nomeação que afecta a nossa liberdade e a forma como nos representamos perante todos os outros agentes.

É neste sentido que só nos podemos espantar com as seguintes declarações que mais uma vez patenteiam uma extrema desonestidade intelectual

expressão
“fascismo social” proposta e divulgada por Boaventura Sousa Santos (BSS). Com a expressão quer o autor classificar o carácter não democrático do “regime social”, por contraposição com o do “regime político”. Como no regime social não há mecanismos de decisão próprios para além dos políticos, a expressão é metafórica, não conceptual, apesar da fuga para a frente ensaiada quando se fala do “poder de veto” sobre o social dos “actores não estatais”.

Mas não é nada disto que diz Boaventura no artigo para que o canhoto nos remete. Então que diz ele: “trata-se de uma nova constelação sociopolítica caracterizada pelo confinamento da democracia a um campo político cada vez mais estreitamente definido” onde os actores não-estatais assumem um poder de veto sobre a vida dos despossuídos de poder. E isto faz toda a diferença. Ocorrem-nos facilmente miríadas de exemplos que se integram perfeitamente nesta descrição: o poder total de despedir alguém que não possui qualquer influência no mecanismo que o exclui, acção que é por essa razão absolutamente heterodeterminada. Este conjunto de micro e macro poderes que esvaziam a capacidade de autodeterminação do seu sentido positivo (estaremos então em presença da ilusão de autodeterminação, mas que é autodeterminação meramente negativa dado que apenas responde ao desejo de não ser excluído), parece-me merecer o apropriado termo de fascismo social. Não era este o mecanismo de imposição dos fascismos políticos? Não há nada de metafórico nisto, assim como não havia nada de metafórico nas listas negras do mccarthismo.

Começo a perceber a origem do título do blogue. É canhoto porque por lá se passa a vida a bater punhetas – não tem nada a ver com o posicionamento político.


(ps: mas não sou cristo; sou o baptista)