Da mentira entre nós
A mentira e o seu papel nas relações sociais não foi nunca objecto de grande reflexão por parte das ciências sociais. Talvez porque a demanda dos filósofos pela verdade ou os questionamentos dos pensadores sociais tenha incidido sobretudo no complexo ético da revelação das regras que regulam o viver social tendo por objectivo estabelecer princípios normativos. Esta pressão intelectual para a normatividade laborou para que preceitos reconhecíveis fossem aceites e partilhados como fundacionismos científicos. A ilusão da transparência de que falava Durkheim ou a falsa consciência sobre a qual teorizara Marx eram no fundo injunções positivistas que esperavam recuperar através do racionalismo uma recôndita verdade por detrás das pressupostas aparências.
O ponto de não retorno para a crença nas regras que se transformam em leis que por sua vez regressam ao estatuto de regras atingiu-se com a disseminação do relativismo. Todavia, também o relativismo tem dificuldade em aceitar a mentira como dispositivo organizativo das relações humanas. O relativismo torna a verdade discutível e por isso mesmo impossível de ser assumida como uma única versão; mas não a mentira. Esta última é tão nociva para o relativismo como para as diversas modalidades de positivismo. Se a verdade é relativizada é porque passamos a aceitar versões concorrentes dessa mesma verdade - perspectivas distintas sobre as quais percepcionar uma mesma verdade como pretende o perspectivismo. A mentira não pode ser lida através da mesma assunção sob pena de se negar um fundamento ontológico à verdade.
A mentira teve, e tem, um lugar central na literatura e aí abundam exemplos, dos mais iníquos aos mais inocentes, de como a mentira é instrumental para vivermos em conjunto. A literatura constitui a prova de como a cientificidade (vulgo racionalidade) tem dificuldade em lidar com a mentira. Para a literatura a mentira proporciona as junturas entre diversos episódios e personagens, serve como uma espécie de mobil para a acção. Dom Quixote pode ser visto como o exemplo da superlativização da mentira enquanto justificação para a acção. E muitos outros casos podem ser citados: Bovary vive uma mentira que a precipita para a morte; Anna Karenina não se conforma com a falsidade da sua vida sentimental e decide também pôr termo à vida (as mulheres suicidavam-se em barda nesta época); mesmo recuando encontramos a mentira na maioria das peças de Shakespeare e Édipo Rei encerra uma moral que nos é revelada com a denúncia de uma mentira.
Mas a ciência, mesmo a mais especulativa, nunca tomou a mentira muito a sério. Porém, olhando à nossa volta ou mergulhando nesse imbricado receptáculo que é a memória não podemos senão concluir que a mentira é aquilo que fundamentalmente partilhamos (parafraseando uma frase de Agustina). Porquê então esta incapacidade de reconhecer e analisar a mentira? Uma hipótese que se afigura aceitável é que uma tal aceitação equivaleria a gerar uma contradição insanável dentro do próprio sistema de ideias que governa a ciência. Oferecer um estatuto analítico próprio à mentira é negar a possibilidade de descobrir a verdade. Se isto não é sobremaneira problemático para a filosofia -basta lembrar Wittegenstein- é torturante para as ciências sociais. Seria a economia capaz de conviver com a ideia de que os actores económicos mentem e que a racionalidade dos seus actos é apenas resultado de uma leitura retrospectiva que tenta ver nos efeitos cumulativos gerados pelas suas acções fenómenos emergentes dotados de lógica? Ou seriam a sociologia e a psicologia suficientemente robustas se pressupusessem que o testemunho dos actores é essencialmente falacioso e que a mentira, ao invés de ser uma distorção, é instrumental nas relações humanas? Que garantias epistemológicas teriam ambas as ciências se a mentira não fosse apenas uma questão de subjectividade mas abri-se antes um espaço de indecidibilidade?
Talvez não seja o problema da complexidade do próprio material com que as ciências sociais trabalham que origina as dificuldades de previsão ou as incompletudes no campo da objectividade, mas mais simplesmente a incapacidade de integrar a mentira como estruturante das práticas sociais. Acontece que temos todo um acervo de produção científica que se encontra às avessas com o mundo.
O ponto de não retorno para a crença nas regras que se transformam em leis que por sua vez regressam ao estatuto de regras atingiu-se com a disseminação do relativismo. Todavia, também o relativismo tem dificuldade em aceitar a mentira como dispositivo organizativo das relações humanas. O relativismo torna a verdade discutível e por isso mesmo impossível de ser assumida como uma única versão; mas não a mentira. Esta última é tão nociva para o relativismo como para as diversas modalidades de positivismo. Se a verdade é relativizada é porque passamos a aceitar versões concorrentes dessa mesma verdade - perspectivas distintas sobre as quais percepcionar uma mesma verdade como pretende o perspectivismo. A mentira não pode ser lida através da mesma assunção sob pena de se negar um fundamento ontológico à verdade.
A mentira teve, e tem, um lugar central na literatura e aí abundam exemplos, dos mais iníquos aos mais inocentes, de como a mentira é instrumental para vivermos em conjunto. A literatura constitui a prova de como a cientificidade (vulgo racionalidade) tem dificuldade em lidar com a mentira. Para a literatura a mentira proporciona as junturas entre diversos episódios e personagens, serve como uma espécie de mobil para a acção. Dom Quixote pode ser visto como o exemplo da superlativização da mentira enquanto justificação para a acção. E muitos outros casos podem ser citados: Bovary vive uma mentira que a precipita para a morte; Anna Karenina não se conforma com a falsidade da sua vida sentimental e decide também pôr termo à vida (as mulheres suicidavam-se em barda nesta época); mesmo recuando encontramos a mentira na maioria das peças de Shakespeare e Édipo Rei encerra uma moral que nos é revelada com a denúncia de uma mentira.
Mas a ciência, mesmo a mais especulativa, nunca tomou a mentira muito a sério. Porém, olhando à nossa volta ou mergulhando nesse imbricado receptáculo que é a memória não podemos senão concluir que a mentira é aquilo que fundamentalmente partilhamos (parafraseando uma frase de Agustina). Porquê então esta incapacidade de reconhecer e analisar a mentira? Uma hipótese que se afigura aceitável é que uma tal aceitação equivaleria a gerar uma contradição insanável dentro do próprio sistema de ideias que governa a ciência. Oferecer um estatuto analítico próprio à mentira é negar a possibilidade de descobrir a verdade. Se isto não é sobremaneira problemático para a filosofia -basta lembrar Wittegenstein- é torturante para as ciências sociais. Seria a economia capaz de conviver com a ideia de que os actores económicos mentem e que a racionalidade dos seus actos é apenas resultado de uma leitura retrospectiva que tenta ver nos efeitos cumulativos gerados pelas suas acções fenómenos emergentes dotados de lógica? Ou seriam a sociologia e a psicologia suficientemente robustas se pressupusessem que o testemunho dos actores é essencialmente falacioso e que a mentira, ao invés de ser uma distorção, é instrumental nas relações humanas? Que garantias epistemológicas teriam ambas as ciências se a mentira não fosse apenas uma questão de subjectividade mas abri-se antes um espaço de indecidibilidade?
Talvez não seja o problema da complexidade do próprio material com que as ciências sociais trabalham que origina as dificuldades de previsão ou as incompletudes no campo da objectividade, mas mais simplesmente a incapacidade de integrar a mentira como estruturante das práticas sociais. Acontece que temos todo um acervo de produção científica que se encontra às avessas com o mundo.
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