Somos todos muçulmanos!
A polémica gerada pelas caricaturas de Maomé publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten possui contornos interessantes em que vale a pena reflectir e que são pela sua própria natureza absolutamente marginais à discussão da liberdade de expressão.
Primeiro, a aparente razão da raiva. Como é sabido o Islão não permite qualquer forma de representação dos seus profetas (não apenas de Maomé) sob pena de se cair no pecado de idolatria. Por conseguinte, logo ao nível da simples representação temos um potencial caso de descontentamento religioso e comunitário. Acresce que Maomé é apenas um dos profetas do Islão –apesar de ser o mais perfeito de todos eles, portanto o que está mais perto de deus, e aquele que unificou as tribos árabes fundando o “mundo islâmico”- sendo que quer Jesus quer Maria, que o precedem, são igualmente considerados profetas do Islamismo. Ao caricaturar Maomé o jornal sabia perfeitamente o que estava a fazer; por isso não caricaturou Jesus ou Maria, mas podia tê-lo feito igualmente. Portanto logo aqui se indicia um elemento de premeditação na acção do jornal. A divisão é evidente: onde não seria bem vista, na Luterana Dinamarca, caricaturas de Jesus, não há problema nenhum em caricaturar Maomé. E na verdade o jornal recusou, no passado, publicar caricaturas de Jesus. As desculpas publicadas são sobretudo efeito do medo e não da reconsideração do acto.
Segundo, a postura do Jornal. Trata-se de um jornal conservador com longo historial de intervenções anti-imigração, em particular contra a comunidade muçulmana a viver na Dinamarca. As 12 caricaturas possuem, todas elas, uma mensagem derrogatória para a religião Islâmica equacionando a figura de Maomé com violência, ódio, opressão e terrorismo. Que os muçulmanos sejam assim vistos não autoriza a representar a sua principal figura religiosa da mesma maneira. Portanto parece existir uma consistência latente no trabalho dos caricaturistas que um semiótico greimassiano não teria dificuldade em classificar como uma isotopia.
Nestes casos, é sempre interessante tentar o exercício de nos colocarmos no lugar dos outros seguindo a prática do looking-glass self. Imaginemos que são publicadas 12 caricaturas sobre a religião católica e que todas sem excepção representam a virgem em posições sexualmente chocantes. Qual seria a reacção da comunidade católica internacional? Não é preciso ir muito longe; é suficiente relembrar o caso do Papa com o preservativo no nariz para perceber que o paralelismo não é assim tão rebuscado. Na altura a Igreja saiu em defesa da sua congregação de fiéis e decretou autocraticamente que tais intervenções jornalísticas eram inadmissíveis. Que me lembre nenhum dos outros jornais repetiu a publicação dessa mesma caricatura iniciando assim uma reacção em cadeia, supostamente, pela liberdade de expressão.
Dito isto, há manifestamente uma correlação de interesses políticos no mundo Islâmico que visa deliberadamente intensificar o conflito.
Numa manifestação no Iemen as mulheres sairam à rua em protesto pela publicação das caricaturas. Tratou-se de uma manifestação pacífica cuja intenção foi mostrar incredulidade perante o que estava a acontecer. Estas mulheres não compreendiam o porquê da ofensa e decidiram retaliar boicotando os produtos dinamarqueses. Contudo, a maneira como a dimensão dos protestos ganhou expressão e como se tornou num rastilho para acções guerrilheiras não se deve apenas a motivos religiosos.
Penso que é necessário não desvincular os protestos e a sua intensidade da ameaça iminente de um ataque ao Irão (será mera coincidência que as reacções tivessem sido proteladas durante quatro meses?). A reacção dos Muçulmanos porventura decorre do facto de mais uma vez se sentirem subjugados pelas potências ocidentais. Se bem que é conveniente evitar a reedição do discurso do Grande Satan, é também necessário manter em perspectiva que se trata de uma comunidade que se sente desrespeitada na Europa, oprimida pelos Estados Unidos e à beira de ver mais um dos seus bastiões esmagado pela coligação internacional. Não é verdade que Dick Cheney declarou recentemente que a intervenção militar no Irão estava a ser considerada? Não admira portanto que os líderes dos países árabes se tenham afadigado a atear o fogo. No Egipto interessa a Mubarak ganhar as eleições; na Síria, este incidente foi utilizado para inflamar reacções nacionalistas e muito pouco foi feito para evitar o ataque à embaixada da Dinamarca em Damasco. Na Arábia Saudita o acontecimento está a ser manipulado pelo regime de tal forma que houve um conluiu entre mesquitas no sentido de incluir nas preces um ataque aos dinamarqueses. E há também o curioso pormenor da proliferação das bandeiras da Dinamarca que de repente são mais fáceis de encontrar nos países árabes do que a bandeira do Benfica à porta da Luz em noites de derbi. Foi também noticiado que um dos Imans da Confederação da Dinamarca acrescentou (terá sido descuido?) uma décima terceira caricatura, ainda mais ofensiva, às 12 já publicadas. Por tudo isto as motivações políticas são indesmentíveis. Porém, quer isto dizer que devemos desvirtuar os acontecimentos e tomá-los como reacção de uma turba de fascínoras incontrolável? Pelo contrário. Se alguma coisa as reacções muçulmanas nos ensinam é que é preciso recorrer a métodos mais convincentes que quebrem a serenidade amodorrada da discussão da liberdade de expressão ou o consenso serôdeo do jogo dos grupos de pressão. Arrisco a considerá-los um verdadeiro acto político, no sentido que lhe empresta Schischec ou Badiou – um acto que mude as regras do jogo, de uma tal violência que os posicionamentos políticos anteriores não possam mais ser vistos segundo o antigo paradigma. Os muçulmanos sabem que estão a ser enganados; reconhecem a suprema hipocrisia e cinismo dos USA que se apressaram a mostrar-se solidários com os manifestantes e os protestos enquanto gizam um plano para invadir o Irão; sabem também que os media não são propriamente exemplares no que toca à liberdade de expressão e que a capacidade de os influenciar é assimétrica; sabem que a Europa segue a locomotiva norteamericana interessada que está em ver os seus projectos neo-imperialistas levados a bom termo e em mostrar que ainda conta no xadrez mundial. O efeito perverso destas acções é que vão acelerar o ataque ao Irão assim como fazer engrossar as fileiras daqueles que o justificam; não por acaso a direita evangélica norteamericana foi tão efusiva na defesa dos direitos religiosos. Mais uma vez as posições americanas são bafejadas por um consenso ideológico talhado à medida dos seus intentos belicistas. Por isso se revolta o mundo árabe: contra a impotência, contra a mascarada dos processos negociais, contra a instrumentalização das organizações internacionais e contra a exploração de que são vítimas quer pelos regimes corruptos que os governam quer pelas potências ocidentais que suportam estes regimes. Resulta portanto que a ilação a tirar é que por vezes é preciso partir a loiça.
Fica contudo uma ironia de antologia: é que a Dinamarca aprovou recentemente uma lei em que pune a queima de bandeiras nacionais. Vive la politique!
Primeiro, a aparente razão da raiva. Como é sabido o Islão não permite qualquer forma de representação dos seus profetas (não apenas de Maomé) sob pena de se cair no pecado de idolatria. Por conseguinte, logo ao nível da simples representação temos um potencial caso de descontentamento religioso e comunitário. Acresce que Maomé é apenas um dos profetas do Islão –apesar de ser o mais perfeito de todos eles, portanto o que está mais perto de deus, e aquele que unificou as tribos árabes fundando o “mundo islâmico”- sendo que quer Jesus quer Maria, que o precedem, são igualmente considerados profetas do Islamismo. Ao caricaturar Maomé o jornal sabia perfeitamente o que estava a fazer; por isso não caricaturou Jesus ou Maria, mas podia tê-lo feito igualmente. Portanto logo aqui se indicia um elemento de premeditação na acção do jornal. A divisão é evidente: onde não seria bem vista, na Luterana Dinamarca, caricaturas de Jesus, não há problema nenhum em caricaturar Maomé. E na verdade o jornal recusou, no passado, publicar caricaturas de Jesus. As desculpas publicadas são sobretudo efeito do medo e não da reconsideração do acto.
Segundo, a postura do Jornal. Trata-se de um jornal conservador com longo historial de intervenções anti-imigração, em particular contra a comunidade muçulmana a viver na Dinamarca. As 12 caricaturas possuem, todas elas, uma mensagem derrogatória para a religião Islâmica equacionando a figura de Maomé com violência, ódio, opressão e terrorismo. Que os muçulmanos sejam assim vistos não autoriza a representar a sua principal figura religiosa da mesma maneira. Portanto parece existir uma consistência latente no trabalho dos caricaturistas que um semiótico greimassiano não teria dificuldade em classificar como uma isotopia.
Nestes casos, é sempre interessante tentar o exercício de nos colocarmos no lugar dos outros seguindo a prática do looking-glass self. Imaginemos que são publicadas 12 caricaturas sobre a religião católica e que todas sem excepção representam a virgem em posições sexualmente chocantes. Qual seria a reacção da comunidade católica internacional? Não é preciso ir muito longe; é suficiente relembrar o caso do Papa com o preservativo no nariz para perceber que o paralelismo não é assim tão rebuscado. Na altura a Igreja saiu em defesa da sua congregação de fiéis e decretou autocraticamente que tais intervenções jornalísticas eram inadmissíveis. Que me lembre nenhum dos outros jornais repetiu a publicação dessa mesma caricatura iniciando assim uma reacção em cadeia, supostamente, pela liberdade de expressão.
Dito isto, há manifestamente uma correlação de interesses políticos no mundo Islâmico que visa deliberadamente intensificar o conflito.
Numa manifestação no Iemen as mulheres sairam à rua em protesto pela publicação das caricaturas. Tratou-se de uma manifestação pacífica cuja intenção foi mostrar incredulidade perante o que estava a acontecer. Estas mulheres não compreendiam o porquê da ofensa e decidiram retaliar boicotando os produtos dinamarqueses. Contudo, a maneira como a dimensão dos protestos ganhou expressão e como se tornou num rastilho para acções guerrilheiras não se deve apenas a motivos religiosos.
Penso que é necessário não desvincular os protestos e a sua intensidade da ameaça iminente de um ataque ao Irão (será mera coincidência que as reacções tivessem sido proteladas durante quatro meses?). A reacção dos Muçulmanos porventura decorre do facto de mais uma vez se sentirem subjugados pelas potências ocidentais. Se bem que é conveniente evitar a reedição do discurso do Grande Satan, é também necessário manter em perspectiva que se trata de uma comunidade que se sente desrespeitada na Europa, oprimida pelos Estados Unidos e à beira de ver mais um dos seus bastiões esmagado pela coligação internacional. Não é verdade que Dick Cheney declarou recentemente que a intervenção militar no Irão estava a ser considerada? Não admira portanto que os líderes dos países árabes se tenham afadigado a atear o fogo. No Egipto interessa a Mubarak ganhar as eleições; na Síria, este incidente foi utilizado para inflamar reacções nacionalistas e muito pouco foi feito para evitar o ataque à embaixada da Dinamarca em Damasco. Na Arábia Saudita o acontecimento está a ser manipulado pelo regime de tal forma que houve um conluiu entre mesquitas no sentido de incluir nas preces um ataque aos dinamarqueses. E há também o curioso pormenor da proliferação das bandeiras da Dinamarca que de repente são mais fáceis de encontrar nos países árabes do que a bandeira do Benfica à porta da Luz em noites de derbi. Foi também noticiado que um dos Imans da Confederação da Dinamarca acrescentou (terá sido descuido?) uma décima terceira caricatura, ainda mais ofensiva, às 12 já publicadas. Por tudo isto as motivações políticas são indesmentíveis. Porém, quer isto dizer que devemos desvirtuar os acontecimentos e tomá-los como reacção de uma turba de fascínoras incontrolável? Pelo contrário. Se alguma coisa as reacções muçulmanas nos ensinam é que é preciso recorrer a métodos mais convincentes que quebrem a serenidade amodorrada da discussão da liberdade de expressão ou o consenso serôdeo do jogo dos grupos de pressão. Arrisco a considerá-los um verdadeiro acto político, no sentido que lhe empresta Schischec ou Badiou – um acto que mude as regras do jogo, de uma tal violência que os posicionamentos políticos anteriores não possam mais ser vistos segundo o antigo paradigma. Os muçulmanos sabem que estão a ser enganados; reconhecem a suprema hipocrisia e cinismo dos USA que se apressaram a mostrar-se solidários com os manifestantes e os protestos enquanto gizam um plano para invadir o Irão; sabem também que os media não são propriamente exemplares no que toca à liberdade de expressão e que a capacidade de os influenciar é assimétrica; sabem que a Europa segue a locomotiva norteamericana interessada que está em ver os seus projectos neo-imperialistas levados a bom termo e em mostrar que ainda conta no xadrez mundial. O efeito perverso destas acções é que vão acelerar o ataque ao Irão assim como fazer engrossar as fileiras daqueles que o justificam; não por acaso a direita evangélica norteamericana foi tão efusiva na defesa dos direitos religiosos. Mais uma vez as posições americanas são bafejadas por um consenso ideológico talhado à medida dos seus intentos belicistas. Por isso se revolta o mundo árabe: contra a impotência, contra a mascarada dos processos negociais, contra a instrumentalização das organizações internacionais e contra a exploração de que são vítimas quer pelos regimes corruptos que os governam quer pelas potências ocidentais que suportam estes regimes. Resulta portanto que a ilação a tirar é que por vezes é preciso partir a loiça.
Fica contudo uma ironia de antologia: é que a Dinamarca aprovou recentemente uma lei em que pune a queima de bandeiras nacionais. Vive la politique!
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