O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Eu também gostava de ser Boaventura.


Parte dos nossos académicos da área das ciências sociais (e não só) dedica-se a cultivar e nutrir uma raiva mesquinha em relação a BSS. O grande embate do século, nas pequenas capelas académicas do nosso Portugal, parece-me ser o conjunto de comentários acidulados que uma facção do mundo académico vem prodigalizando a BSS. Reportando-nos à mais recente contribuição para esta avançada corrosiva, é interessante verificar como a propósito de um artigo de BSS na Visão, RPP consegue distorcer um argumento a ponto de este passar a servir os seus próprios interesses.

Dizer que o universalismo não pode ser criticado quando este não é efectivo porque é este que proporciona as condições para a crítica é um argumento completamente falacioso; não é só falacioso como também é perigoso. Aplicando a mesma lógica à democracia teríamos: a democracia é inefectiva mas proporciona os princípios necessários para a tornar efectiva, logo não vale a pena tentar modificá-la. O que é que está errado nesta linha argumentativa? É que por vezes as razões da ineficácia não se encontram no conceito, ou na extensão deste (na abstração que é o "universalismo" ou a “democracia), mas sim nos mecanismos que supostamente deviam efectivar esses mesmos conceitos. BSS pode ser convocado enquanto autoridade nesta matéria porque foi ele que introduziu em Portugal, tanto quanto sei, a noção de excesso simbólico. Na altura BSS chegara a conclusão de que Portugal possuia muitas e boas leis, que estaria até avançado em relação a muitos países da Europa; contudo não havia capacidade de as efectivar. Quando BSS refere que os universalismos sempre foram falsos e que estes apenas são accionados quando convém, não há nada de mais cristalino e um olhar que não fosse compactuante com esta versão da crença acrítica no universalismo, que no fundo não é mais do que ideologia pura, não teria dificuldade em aceitar esta afirmação. Haverá exemplo mais claro do que a utilização instrumental dos Direitos Humanos? Não é este o apogeu do universalismo contemporâneo?

Acresce que, o cerne do artigo de BSS é justamente a identificação de dois modos de resposta à ofensa gerada pelas caricaturas. Um informado pela cultura universalista europeia e que por isso gerou um protesto mais contido, e outro que não respeita as regras. Mas o facto de existirem dois contextos simbólicos diferentes onde as reivindicações se inscrevem não dos diz nada da eficácia destas. O universalismo que permite as caricaturas recusou a aplicação da lei anti-blasfémia existente na Dinamarca quando esta foi requerida pela comunidade muçulmana dinamarquesa. É isto que não se compreende: a utilização dos dois pesos e duas medidas, mas que, justamente, revela a manipulação a que o universalismo (neste caso da lei) está as mais das vezes sujeito. Não tem nada a ver com o apoiar do fanatismo islâmico - como sugerem os defensores da liberdade de expressão que utilizam este anátema como arma de arremesso -; prende-se simplesmente com o velho e sábio ditado popular, ou comem todos ou há moralidade.

Um último comentário crítico. Devíamos começar a exigir de RPP que ele mencionasse a paternidade dos conceitos e ideias que utiliza. Apenas dois exemplos que são avonde utilizados: a expressão "excesso de comunitarismo" foi saqueada a Bauman e o famoso conceito de “outrismo” é uma tradução directa de "otherism" cunhado por Tom Burns. O problema não reside na utilização destes termos -eles existem para ser utilizados e como tal são um incremento cognitivo na interpretação dos factos -, mas está na apropriação discricionária desses mesmos termos. E isso roça um pouco a desonestidade intelectual. Desonestidade que sai reforçada quando, ao contrário do que seria esperado, é BSS que utiliza o esquema conceptual do "outrismo" e não RPP que o menciona vezes sem conta, como facilmente se pode verificar pelo excerto seguinte que vale a pena reproduzir in extenso

Verdadeiramente só são caricaturas as que fazemos de nós próprios, ou seja, no seio de uma dada sociedade que se imagina como de pertença comum. É de sua natureza, não serem tomadas literalmente e, portanto, não ofenderem ou não ofenderem ao ponto de quebrar o que temos em comum. As caricaturas que fazemos dos "outros", como não partem da pertença comum, correm sempre o risco de ser tomadas literalmente e ofenderem quem é caricaturado. Quanto maior for a distância entre "nós" e "eles" criada pelos traços da caricatura - por exemplo, os traços de um deus que eles veneram piamente e nós consideramos um fanático terrorista - maior é o risco que tal aconteça. E, quando tal acontece, não se pode esperar que a ofensa seja expressa segundo as nossas regras. Para que tal acontecesse, era preciso que estivéssemos "entre nós", uma condição que as caricaturas começaram por eliminar. Corre-se, aliás, um outro risco: o de a reacção nos caricaturar a nós próprios e nos ofender literalmente (até porque atingidos em pessoas e bens).A contestação gerada pelas caricaturas dinamarquesas veio repor no centro do debate a questão de saber quem somos "nós" e quem são "os outros". Quando há cem anos proliferavam as caricaturas anti-semitas, a reacção dos progressistas, de que hoje nos honramos, era de que os traços das caricaturas sublinhavam que os judeus eram "outros", quando afinal eles eram parte de "nós".

Na minha opinião isto foi a coisa mais inteligente que se escreveu em Portugal sobre as caricaturas.

Considero que RPP tem que viver com pelo menos dois obstáculos intransponíveis: BSS pensa melhor e BSS escreve muito melhor (a segunda é frequentemente o corolário da primeira).