A Literatura light e as novas crianças supersónicas
Em resposta à interrogação que Prado Coelho sugere hoje no Público gostaria de contrapor a versão inversa – o lugar do mundo na literatura actual.
Os avatares na conta corrente do mundo assim como nas mundividências que a sustêm possuem efeitos na literatura e hoje mais do que nunca dado que a literatura cedeu (ou tem vindo a ceder) à sofreguidão do grande público e cada vez mais se ajusta a mercados e gostos específicos. A literatura hodierna deixou para trás as fantasias cyborgs e a perda da natureza humana (seja lá o que for) pela irreversível voracidade da máquina. E tão-pouco se debruça sobre o homem que já não consegue reflectir sobre o seu lugar no mundo porque está perdido num universo disconexo de sinais. As fantasias robóticas estavam fascinadas pela ascenção estatutária de que a rendição ao artificial se reveste. Apêndices, conversões genéticas e expansões da capacidade cerebral era o material de que era feito esta nova oratória do super-antropóide. Mas mesmo esta versão futurológica tem vindo paulatinamente a perder adeptos e, como tal, a perder expressão. Em substituição nasce um mundo mítico-encantado de efabulação da descoberta interior. O que encanta os jovens executivos em livros como Harry Potter ou como o Alquimista de Paulo Coelho a ponto de os transportar para um mundo cuja tecitura perde espessura e onde tudo se encontra dentro do coração (forma atabalhoada de inventar um novo sentimentalismo de recorte universal)? Este mundo projecta-os na consciencialização de que os laços de solidariedade com os outros são primeiro, e sobretudo, expressões de solidariedade consigo próprios. Por isso encontramos pessoas absolutamente satisfeitas com o facto de ao estarem a ser boas para elas próprias estarem automaticamente a contribuir para a estruturação da afectividade com os outros. Beleza, forma física, proezas sexuais, enfrentar desafios, são outros tantos nomes que podem substituir esta necessidade urgente de estabelecer conexões com os que “estão de fora” através daquilo que guardamos ciosamente como apenas nosso. Esta derivação da identidade colectiva pelo desvio da identidade do hiper-ego tem um eco imediato nas duas obras anteriormente citadas. A busca infindável do tesouro que o personagem de Paulo Coelho enceta no Alquimista é aqui um exemplo. Após percorrer seca e meca (literalmente) descobre que afinal o tesouro estava na sua própria casa, donde afinal nunca devia ter saído, mas cuja viagem tem pelo menos a vantagem de o ter feito regressar àquilo que estranhamente parecia perdido. Há um regresso a si próprio. O tesouro traz evidentemente vantagens em termos de compreensão do lugar do mundo que ele ocupa; e essa compreensão atinge-se simplesmente olhando para dentro.
Harry Potter segue mais ou menos a mesma linha. Muito já foi dito sobre a justaposição da estrutura ficcional de Harry Potter e a ideologia conservadora da Inglaterra aristocrática. Foi apontado que as escolas de magia não fazem mais do que reproduzir a rígida hierarquia dos colégios privados ingleses e o cerimonial que a sustém. Houve até quem se sentisse renascer ao constatar o regresso aos bons e sólidos valores da dísciplina e da meritocracia. Harry Potter provém de uma família de baixa classe média dos subúrbios de uma qualquer cidade inglesa. Casas geminadas a perder de vista distribuídas por ruas cinzentas e pacatas. A sua ascenção ao mundo da magia não é apenas uma descoberta de novas capacidades sobre-humanas. É também a sua ascenção social aos colégios de elite. A mensagem por detrás das duas ascenções quando combinadas é simples: é necessário ser mais do que humano para ascender à elite. No fundo, ser mais do que humano constitui uma prerrogativa da elite, que por isso permanece no seu lugar indisputável.
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