Só-do-Cu
Anda para aí uma mania que impregnou os agregados familiares mais cautos; apoderou-se das balzaquianas mais enxutas, das profissões liberais mais selectas, dos idosos mais enérgicos, dos jovens mais ociosos, da tia e dos sobrinhos que vivem na outra banda, do dono do café que cofia a barbicha enquanto folheia a bola, da rapariga do cabeleireiro que estuda à noite num salão de beleza da Madame Campos e tem por vocação impingir produtos com Aloé Vera alvitrando que rejuvenescem mesmo um rigor mortis de dois dias. E até as crianças mais cerebrais se fecham nos quartos desenhados a pósteres da Leopoldina enfiando-se por dentre os lençóis, em congeminações algébricas, ao arrepio dos trabalhos de casa e já nem sequer se distendem nos sofás para assistir em soporíferas doses aos desalentados e inábeis teletubis.
Outrora chegou a temer-se que os bichanos, cães sarnentos de latido estrídulo ou molossos que repassam a dente a humanal perna se a isso forem instigados, fossem impiedosamente substituídos por uns seres movidos a baterias, que até de mamar pediam, e que davam pelo oriental nome de tamagochis. Foi então profetizada uma era de infernais artificialidades, petulantes robotizações e caprichosas engenhocas que iriam definitivamente retirar o berço da natureza aos novos infantes. A geração anterior, e a outra ainda mais anterior, entretera-se com aranhiços de plástico e gomas tremeluzentes. Mais para trás eram as molas da roupa que construíam manipanços; e flatulências diversas durante o banho de imersão mimetizavam o que mais tarde por indagação extemporânea nos arcanos das gueixas menos renitentes se viria a convencionar chamar de Jacuzzi.
Mas a história, madrasta e especiosa, negando à compita todos aqueles que nela querem lobrigar um telos e que urdem conluios de inexoráveis fins, deu meia-volta, e recuperou nos manuscritos do Mar Morto ou nas entrelinhas do Gilgamesh, ou na mítica narratividade do Mahabarata ou, quiçá, no ancestral feng chui umas quadraturas irmanadas quatro-a-quatro, que dê lá por onde der, têm de somar todas o mesmo número - sem repetições que aquilo não é como no bingo em que escusamos de nos envergonhar se sarapintarmos o mesmo número em cartões diversos.
Este passatempo inescapável que ocupa tanta compenetrada mente por esses fins-de-semana de lazeira ou em exercício de obração a crucificar o hemorroidal pelo tempo que nele se despende ou no amolecimento dos lençóis quando a viril investida foi substituída pela ronceira monotonia, recebeu o achinesado nome de Só-do-Cu.
Então é ver donas de casa, cujos marido trabalham duro no dia-a-dia ou se demoram em esgueiradas nocturnas às putas de Leste, a prespirar furiosamente de caneta rilhada entre os dentes, alguns alvos outros cariados, enquanto cogitam em truques Laplacianos para resolverem a contento o Só-do-Cu. A criançada que não se intrometa que é logo varrida à chapada, com a palma da mão retesada e a boca contorcida a aspergir coriscos e bardamerdas. A rapariga do balcão do Café-di-Roma, bem que se pode esperar por ela, como esperava o outro por Goudot, que ela há-de estar entretida a fazer carreirinhas de Só-do-Cu com tal intrincada precisão que mais se assemelha à teia de Penélope. O cumprimento de horários por parte de autocarros e eléctricos, como se fossem estes dotados de vontade, passou a estar vergado aos compromissos Só-do-Cuais dos condutores da carris. Dantes uma partida de bisca lambida ou o ferrar do galho no terminal eram mensuráveis; mas o Só-do-Cu, como bem se percebe pela milenar sabedoria que lhe está subjacente, é intemporal, incomensurável – tanto pode ser resolvido num piscar de olhos como demorar uma eternidade, empreendendo página a página em graus de maior complexidade e portanto de necessária maior perícia. Esqueçam os papéis amarelados expostos nas vetustas paragens dos autocarros, apinhadas de gente mirrada a esconder-se da chuva molha-parvos, onde se confundem aqueles números todos com medidas horárias segundo o meridiano de Greenwich, mas que são em verdade resquícios do calendário Islâmico deixados aquando do cerco de Lisboa, representativos de uma contagem em luas. Os barcos do Barreiro vão atrasar, com a marujada toda dispersa pelo convés, ensimesmada a fazer Só-do-Cus em vez de recolher a âncora e dar pressão à caldeira. Até o metropolitano, que chega com regularidade invejável, se vai tornar um suplício, com o condutor a abusar do seu delegado lugar de timoneiro, a parar entre o Rossio e o Martim Moniz, na negritude desconsolada dos túneis da Baixa, para acabar uma fila de um Só-do-Cu mais obstinado.
Com esta recuperação de um xadrez caseiro e maneirinho, acessível tanto à empregada bielo-russa, de fulvos e deslizantes cabelos, como à avó esclerosada que dormita sempre com um fio de saliva a deslizar-lhe pela comissura dos lábios, os velhos quebra-cabeças estão de volta. Aquilo que lubrifica verdadeiramente a mioleira, que encera e dá lustro ao cerebelo, que põe as bielas do bestunto a saltitar, que electriza os lobos, seja o frontal seja o inferior, veio para ficar. Nas abastadas casas dos novos-ricos, encimando as mesas de vidro, que mostram através da sua transparência deslizante ufanos tapetes persas, onde dantes se encontrava um sortido de Iolas e de Cláudias Decoração passaram a repousar na sua sageza singular os pequenos fascículos do Só-do-Cu com os ilustrativos caracteres chineses para se saber que aquilo é a sério e não uma qualquer falsificação surripiada aos ciganos do Bairro Padre Cruz.
Esta presença obsidiante começa a estender-se às Universidades e aos liceus onde os jovens estudantes, fartos dos charros e da coca, já sentem o irresistível apelo do Só-do-Cu, tal-qual ratos enfeitiçados pela cantilena do flautista de Hamlin. Génios para ser e aqueles que já firmaram competência nos annais da ciência andam desvairados num arroubo Só-do-Cuista que paralisa a produção académica. E onde antes, nos pesados serões da cinemateca, se contavam hai-cus a emular antigas ágoras palrantes, trocam-se agora segredos de ábaco sem contas, senão as que de cabeça se vão regurgitando.
No Alentejo as tascas dos velhos dominós não resistem ao tufão Só-do-Cu: lá se vai esvaecendo o alegre estrepitar das peças esburacadas impondo-se paulatinamente o zunido compassado do escrevinhar nas abstrusas quadrículas. E aqui ao meu lado já se deita um casal, daqueles que vende saúde e passa os finais de tarde no fitness, torneando bem os corpos e cinzelando os músculos por efeito da tonificação provocada pelo esforço descomedido do levantamento de pesos, sangue que agora se bombeia mas que mais tarde se há-de transformar em coágulos e embolias. Um casal bem bronzeado dos fins-de-semana prolongados em Armação de Pêra; ele delegado de propaganda médica e ela enfermeira no Hospital da CUF. Conheceram-se no ginásio e por lá ainda andam embora agora regressem juntos ao lar e partilhem da mesma dobra de lençol. E ouço-a dizer para o marido, num ciciar enternecido, enquanto se aninham na descompostura do edredão – querido, e se fizéssemos um Só-do-Cu?