sexta-feira, março 24, 2006
quinta-feira, março 23, 2006
Está a brincar, Sr. Bruno?
2. O problema é o conceito de "reificação" - o que é que reifica? Mas aqui a questão coloca-se justamente no prório mecanismo que supostamente reifica as minorias, i.e., as estatísticas. É a propósito das consequências deste mecanismo que eu faço o meu comentário e não da existência de categorização o que seria completamente absurdo. Ou admitimos que um grupo nem sempre é reificado ou supomos que um grupo é sempre reificado, se assim for então à que explicar por que razão a categorização estatística reifica.
Reificação é o processo de considerar algo (neste caso um grupo) como se fosse uma coisa. Em termos marxistas é a transformação de substâncias em mercadorias. Seja como for é sempre a coisificação, a objectivação; e no caso dos processos de racialização consubstancia-se na naturalização de um grupo. O termo “racialização” é o conceito chave aqui. Como diz o Bruno (e eu estou longe de discordar) o racismo opera através de uma categorização que é investida de valor negativo. Discordo em absoluto que o racismo possa ser investido de valor positivo. Este é simplesmente o argumento dos sectores conservadores - o famoso: “mas eles também são racistas em relação aos brancos” - ou o argumento primário contra o multiculturalismo - "se os encerrarmos nas suas identidades ainda se tornam mais racistas em relação à sociedade de acolhimento" pela simples razão que o racismo opera numa estrutura de desigualdade de recursos – sejam eles simbólicos, económicos, políticos ou sociais. Para que o termo racismo possua um potencial heurístico tem que definir os seus próprios limites.
Não será por acaso que RPP desalojou o conceito de "racialização" pelo bem menos evidente e mais acéptico "outrismo". Contudo, nunca RPP explicou qual é a especificidade do outrismo baseado na “raça”. Na medida em que o outrismo é sempre a enunciação (e exclusão) de um "outro", com a consequente criação de uma oposição friend/foe resultante da própria estrutura da relação, convinha saber por que razão se pode este alicerçar na "raça", no fenotipo enquanto marcador racial. O "outrismo" engloba qualquer relação social deste tipo (pode, por exemplo, ocorrer numa relação construída segundo a oposição bonitos/feios ou ricos/pobres ou qualquer relação que construa uma colectividade, mesmo que imaginariamente, através dos mecanismos da exclusão) a sua especificidade no que toca ao racismo nunca é explicitada por RPP. Ficamos assim com um conceito que serve para tudo e, como no velho paradoxo filosófico, não serve para nada.
3. O Bruno convoca, evidentemente, a definição de Miles. Mas fico estupefacto com o desconhecimento que ele mostra possuir da teoria da racialização. E sinceramente não vejo onde ele me contradiz. Estamos de acordo com a categorização, mas não é este um processo de reificação? Não era Franz Fanon que dizia que a categoria "branco" só existia por oposição à categoria "negro" enquando incorporadora do "mal"? Não era justamente a coisificação da consciência dos negros que os encerrava numa categoria inferior? Eventualmente houve alguma confusão com a minha alusão à "classe para si". Há dois níveis de argumentação no post. Por um lado, e este é o fulcro do post, a reificação pré-existe à categorização estatística - nisso parece que o Bruno está de acordo. Donde se torna inverosímel dizer que as categorias estatísticas reificam o que afinal pelo próprio processo de categorização se encontra já reificado. Por outro lado, não só os grupos já se econtram reificados como a categorização étnica pode, em larga medida, gerar um efeito político. Daí o exemplo dos negros norteamericanos. O paraleo com a classe para si servia para ilustrar este ponto. Tal como a Klasse fur sich, somente quando o grupo étnico toma consciência que existe numa posição desigual e que é alvo de objectivação do seu fenotipo se pode este tornar actor político. Uma tal condição não surge necessariamente da posição de classe (ou apenas da posição de classe); envolve as mais das vezes empreendedores políticos, tais como líderes carismáticos ou pessoas colocadas em lugares estratégicos na relação de forças que se estabelece entre minoria e maioria. Este é, a meu ver, o salto qualitativo que é dado quando se assume a posição de interlocutor político. Por conseguinte, perguntava-me se não será o receio de uma emergência política dos grupos étnicos que condiciona o pensamento sobre o racismo e força ao apagamento dos processos de racialização pela sociedade portuguesa.
Nunca eu disse que apenas em casos de exploração de classe tal fenómeno acontecia, desde logo porque menciono o caso do anti-semitismo nazi onde obviamente o modelo da dialéctica das classes não pode ser aplicado. Contudo, não deixa de persistir a desigualdade: não eram os judeus definidos pelos seus atributos infra-humanos? Não é o anti-semitismo organizado através do pressuposto de que os judeus eram o elemento impuro da comunidade? O nazismo traduziu e elevou essa impureza, esse elemento poluidor, numa somatização do judeu. Embora esta já existisse anteriormente, passava doravante a alicerçar-se no conhecimento científico que elegeu a antropometria como forma de classificar, e portanto reificar, a (des)humanidade do judeu.
4. Finalmente, fiquei eu e ficámos todos sem saber o que pensa o Bruno sobre as categorias estatísticas e sobre o argumento segundo o qual o efeito destas seria a reificação. Isto era mais importante do que insistir em verdades de Lapalice como a do racismo operar através de categorizações. Ficamos na ignorância como ficámos sem saber por que razão gostava o Bruno do Zizek. Tudo a bem do espírito dialéctico.
quarta-feira, março 22, 2006
Inchalá
Não, isto não é um repentismo de uma mente maléfica -ou seja, eu- que decidiu extemporaneamente macular toda uma religião ofendendo gratuitamente aqueles que a professam. Nem tão-pouco uma das últimas tentativas de retornar a Artaud ou aos poetas malditos. Nem sequer uma pouco original e redundante iniciativa de duplicação do universo Monteirista (leia-se aquele a quem chamavam César Monteiro, o grande gnóstico da porcalhisse, e não o Manel, o grande prelado da sacanisse).
Isto é a descrição de um filme de Otto Preminger dos idos anos oitenta que nunca chegou a ver a luz do dia dado que foi embargado pelo governo austríaco (aliás, pergunto-me se o César Monteiro não se baseou neste filme maldito para recriá-lo na cena de entrada de A bacia de John Wayne: "je suis le Demon e j’avais des colhons!").
" Eu quero que o Polo Norte se foda!"
Como escrevi em post anterior sobre as caricaturas de Maomé a ofensa só tem eco no espaço simbólico que a entende como ofensa. Para os muçulmanos insinuar que Maomé tinha desejos ou fantasias sexuais seria corriqueiro dado que Maomé não se fazia nunca rogado quando era para afogar o ganso, esconder o salame ou desenferrujar o martelo. Daí que o espaço simbólico onde a explicitação do sexo através do sagrado pode ser considerado uma blasfémia é, por regra, o do cristianismo.
Aliás não foi exactamente sobre isso que César Monteiro lançou o seu olhar escarninho ao criar o João de Deus? O pornógrafo consumado que só pensava em crica? Mas se se aceita que os cristãos fiquem tão incomodados perante insinuações ou explícitas referências sexuais envolvendo os seus símbolos mais sagrados, por que será tão problemático aceitar que os muçulmanos se sintam ofendidos com as representações de Maomé? Liberdade de expressão? Como diria César Monteiro "vamos embora Luciano que já enganámos mais um!".
terça-feira, março 21, 2006
Racismo sem raça
Fico um pouco estupefacto quando diz que “é justamente o processo de visibilidade das minorias qua desiguais que as reifica”. O que é esta visibilidade de um grupo como desigual (inferior ou superior) senão uma categorização, a que nomeia antes de mais o próprio grupo? Seguida de um investimento de valor negativo ou positivo nesse mesmo grupo. Ora bem, no caso dos grupos raciais trata-se de investir um traço fisionómico ou cultural de um determinado valor, que passa a sobredeterminar, aos olhos do categorizador, todos os indivíduos do grupo categorizado. Os modos pelos quais essa categorização se fez e as razões a ela associadas são questões que só se podem responder historicamente, para cada situação. O colonialismo e a perseguição religiosa aos judeus estão na origem de formas de descriminação a que damos o nome genérico de racismo, mas que assumiram e assumem formas muito diferentes.
Mas o que interessa é que a categorização não é apenas uma operação neutra de ordenação cognitiva do real. Ela tem efeitos, e no caso da categorização racial, como tu bem dizes, corresponde à atribuição de uma inferioridade que se sobrepõe (mas não só) à exploração de classe.
Não estou a por em causa as lutas igualitárias dos negros americanos. Se a cor da pela os colocava numa situação de opressão comum, em virtude justamente da atribuição de inferioridade pela pertença a uma categoria, então essa opressão deve ser nomeada e combatida. Devemos denunciar e combater o racismo, sem portanto ceder à tentação de admitir que existem raças.
segunda-feira, março 20, 2006
Então lá vai
Ao anónimo importunado (incertas variações Bocagianas)
O leitor assíduo do comentário bloguista
Sentiu-se vexado pelo silêncio alheio
Retorquiu em comentário trocista
Que quem vivo se anunciara, já morto veio.
O anónimo, lesto e impertigado
Com o novel comentador exangue
Enviou invectivo recado
P’ra que cedo corresse o sangue
Já se preparava a punção
Da medicina reuniam-se os canhenhos
Clamava-se por extemporânea ablação
Enrugavam-se premeditadamente os senhos
Era tamanha a afronta, a ânsia, o desmando
A desbragada e ominosa frustração
Que foi o escriba no seu trabalho deslustrado
Em tão fera quanto injusta proporção
Oh, mas a vida compõe-se e recompõe-se
De tão surpreendentes quanto lábeis ironias
Em escrevendo torto a verdade impõe-se:
- Do divino se diz e das suas tropelias
E onde ouviste: bebei este é o meu sangue - veja-se!
Devia, caro anónimo, para falar, à prova ter-se posto
Ensinou-nos o peixe, símbolo de martírio e desgosto
Que dos neófitos, é sabido, o sangue não flui - derrama-se
E depois da vil e descortês dissensão posta a nu
E da porfia em comedido tom encerrada
Já nos podemos cumprimentar e quiçá tratar por tu
Dir-lhe-ei como o Char em poesia deleitosa e enfeitiçada
Dans mon pays on ne questione pas en home ému
Então, caro anónimo, não era melhor ir levar onde lhe faz falta?
quarta-feira, março 15, 2006
E a Montanha não pariu um rato
Começo por dizer que gostei francamente de Brokeback Mountain. Não é um filme marcante, e está com certeza longe de ser uma obra-prima da sétima arte, mas cumpre aquilo que promete não defraudando expectativas, especialmente quando estas não são hiperbólicas. As razões pelas quais gostei do filme podem ser enunciadas em três pontos concretos e simples: mostra a América do trabalho -algo que há muito andava arredado de Hollywood-; desfere um ataque explícito aos ícones americanos; e coloca em relevo a hipocrisia da sociedade norteamericana. Consequentemente gostei do filme porque ele possui uma “mensagem”, algo que, estou consciente, na cartilha pósmoderna passa por ser um crime de lesa-arte.
Portanto, ao contrário de Zizek que escreveu um artigo profundamente crítico sobre o filme - artigo esse que pode ser lido no Herald Tribune-, não considero que Brokeback caia no cliché algo pedante e simplista da revelação da homossexualidade como a verdadeira natureza das coisas, como muitos filmes assumidamente gays evidenciam a tentação de fazer. Nem tão-pouco considero que seja um filme apenas sobre homossexualidade como se torna óbvio pelas razões enumeradas anteriormente. Aliás, Zizek parece chegar a essa conclusão a contrario sensu quando enfatisa as reacções virulentas contra o filme manifestadas pela direita conservadora e evangélica. Se alguma coisa estas ilustram é justamente a presença de um objecto estranho que perturba a superficial aparência da ordem admissível. Um exemplo ilustrativo é a acusação feita pelos meios mais conservadores segundo a qual o filme polui a imagem do Marlboro man assumida enquanto símbolo da bravura e masculinidade do velho Oeste. Porquanto uma tal interferência na ordem simbólica norteamericana actual me parece um consciente ataque à América intolerante e despótica dos anos Bush, não se me afigura justo encerrar o filme na categoria de filme homossexual ou filme sobre a homossexualidade tout court. E a prova de que não é afere-se pelas várias possibilidades em termos de argumento que o realizador tinha ao seu dispor: que impacto teria um filme sobre corretores da bolsa homossexuais ou sobre artistas homossexuais? A resposta é óbvia: nenhum.
A escolha de um argumento sobre cowboys homossexuais tem, pois, que ser colocada em diversos níveis de interpretação, níveis esses que suplantam largamente a mera tónica no aventureirismo amoroso de dois homens na América rural dos anos 60. Acresce que Zizek assume que o filme se transporta para o passado para evitar uma colisão com o presente. Penso, no entanto, que também aqui está errado. Basta invocar o episódio, passado não há muito, de um comboy homossexual que foi espancado e crucificado numa vedação de arame-farpado pelos seus companheiros e ali deixado até morrer. O assunto está longe de ser anacrónico e tudo indica que permanece como fantasma não exorcisado.
Por outro lado, torna-se necessário não negligenciar toda uma tradição fílmica que joga com as sinuosidades, os subentendidos, o grande-plano carregado de insinuações, do velho Western. Um exemplo assinalável é o “The big Sky” de Howard Hawks protagonisado por K. Douglas onde o primeiro encontro com aquele que passará a ser o seu companheiro de viagem está, indisfarçavelmente, carregado de homoerotismo. Pode discutir-se se esta aproximação homoerótica entre os personagens não é parte constituinte da matriz do épico recuando, por exemplo, até à famosa relação entre Aquiles e Patrocolo. Brokeback está longe de ser um épico; mas talvez porque torna explícita a relação homossexual quebre os frágeis códigos da masculinidade que sustêm a estrutura do companheirismo e da heroicidade entre homens.
segunda-feira, março 13, 2006
Racismo descoberto
A reificação que se pretende evitar está já presente no próprio fenómeno de justaposição entre desigualdades sociais e grupo étnico. Ela não é algo imposto tecnica e burocraticamente de fora, numa espécie de “colonização do mundo da vida” que gerasse artificialmente as categorias propostas. Com efeito, é justamente o processo de visibilidade das minorias qua desiguais que as reifica. Aqui reside uma distinção que convém ter sempre presente: a diferença não tem que ser necessariamente equacionada com desigualdade. Mas o facto de, geralmente, assim ser constitui o princípio dos processos de reificação. Imaginemos que encontramos uma situação ideal em que um dado grupo “racial” – digamos, os negros – se encontra igualmente distribuído por todas as esferas sociais não havendo diferença entre as médias deste grupo e as do grupo nativo. Nenhuma reificação se encontraria aqui porque se torna impossível juntar um grupo de pessoas segundo um único critério quando estas se encontram igualmente distribuídas por um conjunto de factores. E então e a raça? Não é essa a característica comum? Não – a raça só é operativa enquanto marcador quando combinada com um qualquer factor de exclusão. O que tornou a raça operativa como critério, nos tempos do purismo racial, não foi o facto objectivo da cor da pele, mas sim a associação entre cor da pele e inferioridade. Da mesma forma, o que foi operativo no anti-semitismo da Alemanha nazi não foram as especificidades físicas imaginárias, mas sim a conjugação entre estas e a narrativa segundo a qual os judeus eram naturalmente perversos. A raça é um empty-signifier que ganha coloração conforme as forças em confronto e a economia da violência num determinado contexto sócio-histórico. Por conseguinte, pressupor que a categorização reifica aquilo que afinal já se encontrava reificado pela própria dialéctica das posições minoria-maioria é uma falsa questão. É justamente nesta clivagem que se encontra a reificação.
A distinção marxista entre Klasse an sich e Klasse für sich pode aqui tornar-se útil. Podemos dizer que um grupo étnico “em si” existe numa posição objectiva na estrutura de desigualdades – a posição desigual não é mais apenas referenciada à distribuição dos meios de produção, o que obviamente não faria sentido, mas antes à combinação de factores que atribuem uma posição particular de um grupo nessa mesma estrutura. Um grupo étnico ou racial “para si” surge quando toma consciência da sua posição desigual objectiva na estrutura de distribuição de bens. A segunda implica a primeira, mas a inversa não é verdadeira.
O movimento pelos direitos civis que mobilizou a comunidade negra nos Estados Unidos nos finais dos anos 60 resultou de um ganho de consciencialização da posição objectiva ocupada na estrutura de classes. As reivindicações foram equacionadas na linguagem dos direitos civis porque havia um claro entorse na esfera legal. Mas este foi somente o reflexo – o código encontrado para traduzir um conjunto comulativo de agravos (à imagem dos Cahiers des dolences) que se tornou impossível de elidir, de tal forma a fractura era evidente. A contestação gerada pela luta pelos direitos civis era a frente de batalha da posição objectiva na sociedade norteamericana. Os negros norteamericanos tinham de facto pior habitação, pior saúde, pior educação, eram mais mal-nutridos, e ocupavam empregos mais desqualificados – tudo isto eram indicadores objectivos e não reificações fantasistas. A consciencialização dá-se quando a questão ganha uma dimensão política e se apresentam as condições necessárias para que esta seja finalmente traduzida numa linguagem grupal. Que a pertença ao grupo visível “negro” já era equacionada com os factores enumerados anteriormente não surge da instituição imaginária, mas sim de elementos objectivos. Donde nos parece que o receio pela categorização ao invés de revelar uma preocupação sensata pela cristalização dos grupos, procura sim evacuar aquilo que ela pode potencialmente trazer – o conhecimento da situação “real” de um grupo na estrutura de desigualdades, ou seja, na estrutura de classes; conhecimento esse que pode ser traduzido e gerido numa linguagem política: a linguagem das reivindicações e das oposições. Estaríamos tentados em dizer que o “horror” pela categorização não é mais do que o prolongamento do mito do Portugal miscigenador (a nação crioula).
A segunda razão é de ordem prática e afecta com particular acuidade países que, como Portugal, sofreram processos de descolonização. A este propósito opto por uma atenuação do argumento e assumo, em certa medida, o lugar de advogado do diabo. Suponhamos que existem argumentos sólidos contra as quotas (algo com o qual eu discordo plenamente, mas cuja discussão levaria mais tempo), por que razão a categorização impõe inexoravelmente a adopção de um tal sistema? Nada nos permite concluir isto. O facto de os deficientes serem categorizados enquanto tal, não impôs nenhum sistema de quotas – apenas resultou numa espécie de tratamento favorável e em raríssimas situações que é deixado ao critério das organizações.
A categorização tem como efeito imediato superar a eterna dificuldade em distrinçar os cidadãos “brancos” provenientes das colónias dos cidadãos “negros”. O facto de até agora se poder incluir nas estatísticas sobre africanos, “brancos” com nacionalidade, por exemplo, angolana baralha certamente o tipo de informação que se poderia obter caso estas tivessem uma categorização mais fina. Outro dos efeitos obscurecedores da falta de categorização é a impossibilidade de monitorar a situação da segunda e terceira geração quer dos imigrantes provenientes das colónias quer das novas vagas migratórias. Só estes dois aspectos parecem-me dignos de atenção. É claro que numa estratégia para impor o desconhecimento sobre as desigualdades e os factores que lhes estão subjacentes a melhor maneira é evitar a produção de instrumentos que nos permitam identificá-las usando o risível argumento da “reificação”.
Gostaria aqui de fazer um repto ao coordenador do observatório do racismo e xenofobia do centro europeu para o racismo e xenofobia (isto não é um título, é um manual de heráldica – o homem devia ser brazonado) para que expusesse as suas posições sobre a questão para que o debate pudesse aqui ser lançado. Parece que este, ao contrário do meu libelo anti-zeziquiano, lhe concerne mais directamente.
quinta-feira, março 09, 2006
Pela boca fenece o Peixe
Porém, esta é daquelas que mandas o regimento sem arriscar nada: espécie de containing damages da porfia e do dialogismo.
Mas vamos por partes. Gostei de o enfático “o Zizeck tem obra”. E diria mesmo mais: outros há que falam falam e eu não os vejo a fazer nada! O professor Cabaco também tinha obra - saravá Cavaco!-; e que obra. Não será por isso que eu me rojo aos seus pés (piada medíocre, aceito). Não deixa é de ser engraçado como a falta de argumentos acaba por se servir das mesmas muletas retóricas.
Fico contente que tenhas sido indulgente comigo ao avisares os milhares de leitores que já nos lêem de que eu sou conhecedor de uma infinitésima parte da obra do Zizeck (larguei o perfeccionismo fonético e passei a escrever o nome do homem à anglo-saxão).
Daqui te faço igualmente uma vénia informando a maralha de que tu és um leitor impenitente do Zizeck. Consequentemente estava à espera que viesses à liça com porrada zizeckiana. Pelos vistos enganei-me e como num erro lógico cometeste o pecado da petição de princípio. Por isso dizeres que “eu tenho que explicar porquê” pede-te que nos expliques por que razão é o Zizeck um dos melhores filósofos da actualidade. E esta eu aguardo com grande ansiedade, porque talvez sejas tu que me consigas fazer compreender o núcleo da filosofia do Zizeck (se é que existe).
Todavia, convém que nos debrucemos um pouco sobre um exercício de contextualização. O documentário não foi coisinha que eu tivesse visto numa tarde chuvosa de domingo num canal mexicano. O documentário passou num cinema de culto aqui do burgo - tipo Nimas ou King ou ainda Cine 222 dos tempos da Zero - com a nata da intelectualidade transalpina a babar-se à porta como cachorros pavlovianos à espera da campainha. Então soou o gongo - Gooooooooooooong!!!! E a malta lá foi -jovens alternativos, idosos conceituatos, belas mulheres com lentes de fundo-de-copo e eu; enfim, um cortejo do que a sociedade pode oferecer de melhor. No início a coisa distrái. Ouvem-se umas gargalhadas sonoras, que vão pontuando o desenrolar do filme na escuridão, e o pessoal predispõe-se a relaxar enquanto coça os pêlos do peito (pobres dos Glabros - aqui fica também a minha compreensão) ou cheira os sovacos para se certificar que não incomoda a matrona do lado com eflúvios graviolentos. Depois as gargalhadas foram-se tornando mais esparsas e contidas; alguns já cabeceavam num sono entorpecedor e o troar de um ressonar assomava de quando em vez das filas da retaguarda. Estava o Zizeck a ser chato? Não - já desaparecera a pachorra para tanta encenação no vazio. É claro que podíamos dizer que também as coreografias da Pina Baush tentam a mesma façanha (e a meu ver, de maneira muito bem sucedida). Contudo, ali subsiste e impõe-se...o corpo. Mas isto é outra discussão.
Também eu estava à espera de ver uma grande cabeça, com grandes pensamentos, como se presencia nos documentários sobre o Foucault ou o Steiner. Ao invés surge-me ao caminho um gajo a armar ao enfant terrible da academia e, mais propriamente, da filosofia. Nisto enganaste-te redondamente. Nada há de heterodoxo (o teu mal é que tu partes sempre com ideias preconcebidas para estes debates) na postura zizekiana. Pelo contrário, ele é a imagem burilada do estériotipo académico: a pose de géniozinho que diz aquilo que lhe apetece sem se beliscar, de mente que é tão elevada que não está ao alcance do escrutínio da gente banal, do tipo que expõe os seus tiques quotidianos para se afastar do comezinho, etc. Zizeck, como escrevi, torna-se, ao fim e ao cabo, a imagem acabada do plus de jouissance. Do gesto inconsequente.
Enorme desilusão. Se o Zizeck era aquilo o que fazer aos livros? Bem sei que tu pastas num campo ético atípico que tem por premissa que as ideias não têm que possuir uma correspondência com as acções. Hitler ou Pol Pot gostariam com certeza de ir beber uma cervejinha contigo - afinal não eram mais do que boas intenções; pena é que era só para alguns. Estás portanto às avessas de um Lenine.
Finalmente, a comparação injusta e premeditada entre a sobriedade do Balibar e do Boaventura e a disforia do Zizeck. Podias ter convocado os heróis do mesmo campo. Por que não de um Badiou ou de um Sloterdjik? Para ser génio não é, apenas, necessário aparentá-lo. Já agora, tem o Zizeck algo parecido com o ser e o evenment do primeiro ou a trilogia das esferas do segundo? Ou como a Crítica da Razão Cínica do Sloterdjik (saravá Boaventura!). Não me parece. Por isso o problema não é o de uma putativa heterodoxia - que é inexistente - que se projectasse na imagem. Outros nomes, que tua aprecias, e eu também, não precisam disso para nada. Para ficarmos no pensamento sobre a política, e longe de ser exaustivo, nomes como Mouffe, Laclau, Judith Buttler, Chomsky, Boltansky, e o fantástico Ranciére não abusam da tecla do geniozinho académico. Embora o sejam. Zizeck surge na raia do estranhamento não por ser diferente, mas por ser tão marcadamente igual ao académico. Em suma, enverga uma griffe e dessa tenho, ao invés de respeito, uma peçonha irremível. Rematando, fui assolado por uma grande desilusão.
Ah, e gostei muito da vitória do Glorioso contra os red devils (um estranho caso de esquizofrenia?)
(continua)
ps: aguardo a tutoria sobre um dos maiores filósofos da nossa época (e by the way, que é isso do discurso indirecto - faz favor de responder em discurso directo: sê mais prosaico, cum camandro).
quarta-feira, março 08, 2006
Did somebody say inconsequente?
Digo desde já que, para grande pena minha, não vi o documentário sobre o Zizek, dou por isso de barato que o dito documentário aborde quase exclusivamente a imagem de super-star académica que ele tem cultivado. Essa imagem faz um deliberado culto da heterodoxia em relação ao que é a norma académica, o que pode ser irritante, de tal modo a estratégia é explícita. Agora que isso ponha em causa a credibilidade teórica do que ele escreve, isso é que já me parece insustentável. Se for essa opinião do Nuno, então ele tem de explicar porquê. Pelo menos porque é que a apresentação mais sóbria e convencional de um Étienne Balibar ou de um Boaventura de Sousa Santos (já agora, subscrevo inteiramente o que escreveste sobre o Pena Pires) investem as ideias deles de mais credibilidade.
No fim de contas parece-me que a filosofia do Zizek, como a de qualquer outro, tem de ser avaliada pelo que ele escreveu e não por uma reportagem da TV.
Algém disse inconsequência?
segunda-feira, março 06, 2006
Amor
(se Paulo tivesse lido o kamasutra, em vez de escrever disparates aos Coríntios, seríamos todos mais felizes no século XXI)
sexta-feira, março 03, 2006
Esta rapariga tem muito conatus !
quarta-feira, março 01, 2006
Schischekiana
A câmara aproxima-se num travelling frenético acompanhando umas espáduas ainda sem rosto que se deslocam de forma igualmente descompassada. Contornando o corpo - robusto e pesado-, que nos é dado a conhecer de costas, vemos finalmente o rosto: um homem de meia-idade, com barba mal aparada e cabelo revolto e um olhar pequeno mas insinuante. É Slavoi Schischek.
A primeira impressão com que ficamos quando Schischec começa a falar é que ele é atrasado mental. Um inglês roufenho e entrecortado por interjeições, uma voz desarmónica e atabalhoada que projecta um discurso caótico enquanto se faz acompanhar de uma coreografia ritmada de trejeitos. A mão sobe compulsivamente ao cabelo enfiando os dedos displicentemente entre a testa e uma melena mais rebelde que teima em cair para a frente dos olhos e que Schischek empurra para trás com uma brusquidão estudada; daí descai pressurosamente sobre o nariz alisando as narinas como se acentuasse que algo profundo e desconcertante acabasse de ser dito - gestos compulsivos que são acompanhados por um menear tumultuoso da cabeça e por um tom de voz que dir-se-ia improvável num homem daquela estatura.
No princípio do documentário Schischek conta-nos que foi candidato à presidência da Eslovénia pelo Partido da Democracia Liberal e que ficou em segundo lugar porque um dos seus opositores cometeu o dislate de, num debate televisivo, dizer que o QI de Schishek valia o dobro do de todos os candidatos ali presentes. Schischek ri, enfatisando que em televisão não se podem cometer erros infantis. No final do documentário vemos o entrevistador do be.tonight show (ou qualquer coisa parecida), que acabou de falar com Schischek, dizer em gargalhadas estentórias que nunca se divertiu tanto numa entrevista. Schischek acabara de lhe explicar, perante a acusação de ele ser demasiado hermético, reciclando ume velha piada de Popper, que as suas ideias podiam ser contadas à avó do entrevistador, rematando que a acusação de hermetismo não era mais do que propaganda de classe.
Pelo meio é um desfilar de poses e afirmações narcisistas, de uma vacuidade a roçar o insuportável e perfeitamente inconsequentes. Numa conferência em Buenos Aires, Schischek acaba a sua palestra, sobre como combater o capitalismo, e puxa do seu telemóvel de terceira geração para verificar, supomos, as chamadas recebidas. Nos rostos da audiência perpassa um marcado desalento e as pessoas vão saindo lentamente com um passo desencorajador. Nos Estados Unidos, numa qualquer Uiversidade, no final de uma outra preleição,um aluno aproxima-se de Schischek e abraça-o dizendo que era a primeira vez que abraçava um intelectual super star. Á entrada da Universidade de Buenos Aires alguém se aproxima a pedir-lhe um autógrafo, pedido ao qual Schischek acede fleumaticamente para, acto contínuo, se virar para a repórter que o acompanha e dizer que detesta aquilo e que não suporta as multidões que o assediam.
Não podemos senão pensar que Schichek é a imagem acabada do pluis de juissance que ele sistematicamente critica na sociedade capitalista. No limite do cinismo intelectual, Schischek ataca as poses de Lacan enquanto visiona um programa cultural francês do qual Lacan era o responsável nos idos 70. Lacan parece um Boris Karlof que tivesse aterrado de repente na televisão e comecasse a falar numa linguagem indecifrável. Já então se prenunciava a era dos intelectuais televisivos que mais tarde conheceriam os seus expoentes nos super-mediáticos Finkelkraut e Henri-Levi cujo moto poderia ser "o importante é montar a tenda e gerir o espectáculo".
Começa a ser perceptível o aparecimento de um conjunto de acólitos indefectíveis que vêm operando uma colagem ao fenómeno Schischek: cultivam um discurso feito de afirmações tão peremptórias quanto vazias; entretêm-se a salientar o panegírico da irresponsabilização; e até copiam os mesmos traços físicos. Nesta pequena legião pouco se vislumbra de verdadeiramente interessante ou mobilizador. Tal como Schischek, o que importa é parecer.
Schischek esclareceu no início que apenas aparentava humanidade, mas que no fundo era um monstro. Faríamos bem em acreditar. Esqueceu-se foi de acrescentar que era um monstro inconsequente.