Schischekiana
A câmara aproxima-se num travelling frenético acompanhando umas espáduas ainda sem rosto que se deslocam de forma igualmente descompassada. Contornando o corpo - robusto e pesado-, que nos é dado a conhecer de costas, vemos finalmente o rosto: um homem de meia-idade, com barba mal aparada e cabelo revolto e um olhar pequeno mas insinuante. É Slavoi Schischek.
A primeira impressão com que ficamos quando Schischec começa a falar é que ele é atrasado mental. Um inglês roufenho e entrecortado por interjeições, uma voz desarmónica e atabalhoada que projecta um discurso caótico enquanto se faz acompanhar de uma coreografia ritmada de trejeitos. A mão sobe compulsivamente ao cabelo enfiando os dedos displicentemente entre a testa e uma melena mais rebelde que teima em cair para a frente dos olhos e que Schischek empurra para trás com uma brusquidão estudada; daí descai pressurosamente sobre o nariz alisando as narinas como se acentuasse que algo profundo e desconcertante acabasse de ser dito - gestos compulsivos que são acompanhados por um menear tumultuoso da cabeça e por um tom de voz que dir-se-ia improvável num homem daquela estatura.
No princípio do documentário Schischek conta-nos que foi candidato à presidência da Eslovénia pelo Partido da Democracia Liberal e que ficou em segundo lugar porque um dos seus opositores cometeu o dislate de, num debate televisivo, dizer que o QI de Schishek valia o dobro do de todos os candidatos ali presentes. Schischek ri, enfatisando que em televisão não se podem cometer erros infantis. No final do documentário vemos o entrevistador do be.tonight show (ou qualquer coisa parecida), que acabou de falar com Schischek, dizer em gargalhadas estentórias que nunca se divertiu tanto numa entrevista. Schischek acabara de lhe explicar, perante a acusação de ele ser demasiado hermético, reciclando ume velha piada de Popper, que as suas ideias podiam ser contadas à avó do entrevistador, rematando que a acusação de hermetismo não era mais do que propaganda de classe.
Pelo meio é um desfilar de poses e afirmações narcisistas, de uma vacuidade a roçar o insuportável e perfeitamente inconsequentes. Numa conferência em Buenos Aires, Schischek acaba a sua palestra, sobre como combater o capitalismo, e puxa do seu telemóvel de terceira geração para verificar, supomos, as chamadas recebidas. Nos rostos da audiência perpassa um marcado desalento e as pessoas vão saindo lentamente com um passo desencorajador. Nos Estados Unidos, numa qualquer Uiversidade, no final de uma outra preleição,um aluno aproxima-se de Schischek e abraça-o dizendo que era a primeira vez que abraçava um intelectual super star. Á entrada da Universidade de Buenos Aires alguém se aproxima a pedir-lhe um autógrafo, pedido ao qual Schischek acede fleumaticamente para, acto contínuo, se virar para a repórter que o acompanha e dizer que detesta aquilo e que não suporta as multidões que o assediam.
Não podemos senão pensar que Schichek é a imagem acabada do pluis de juissance que ele sistematicamente critica na sociedade capitalista. No limite do cinismo intelectual, Schischek ataca as poses de Lacan enquanto visiona um programa cultural francês do qual Lacan era o responsável nos idos 70. Lacan parece um Boris Karlof que tivesse aterrado de repente na televisão e comecasse a falar numa linguagem indecifrável. Já então se prenunciava a era dos intelectuais televisivos que mais tarde conheceriam os seus expoentes nos super-mediáticos Finkelkraut e Henri-Levi cujo moto poderia ser "o importante é montar a tenda e gerir o espectáculo".
Começa a ser perceptível o aparecimento de um conjunto de acólitos indefectíveis que vêm operando uma colagem ao fenómeno Schischek: cultivam um discurso feito de afirmações tão peremptórias quanto vazias; entretêm-se a salientar o panegírico da irresponsabilização; e até copiam os mesmos traços físicos. Nesta pequena legião pouco se vislumbra de verdadeiramente interessante ou mobilizador. Tal como Schischek, o que importa é parecer.
Schischek esclareceu no início que apenas aparentava humanidade, mas que no fundo era um monstro. Faríamos bem em acreditar. Esqueceu-se foi de acrescentar que era um monstro inconsequente.
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