O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

quinta-feira, março 09, 2006

Pela boca fenece o Peixe

Mordeste o isco. Foi preciso acertar no alvo, machucar onde dói, desafiar o poderoso Cerbero para fora das portas do Hades (hádes cá vir, dizia o outro) para ele começar a escrever neste ermo plano - Aleluia! E com entrada de Leão. Por isso, antes de mais sê bem vindo ao “deserto da realidade”.
Porém, esta é daquelas que mandas o regimento sem arriscar nada: espécie de containing damages da porfia e do dialogismo.
Mas vamos por partes. Gostei de o enfático “o Zizeck tem obra”. E diria mesmo mais: outros há que falam falam e eu não os vejo a fazer nada! O professor Cabaco também tinha obra - saravá Cavaco!-; e que obra. Não será por isso que eu me rojo aos seus pés (piada medíocre, aceito). Não deixa é de ser engraçado como a falta de argumentos acaba por se servir das mesmas muletas retóricas.
Fico contente que tenhas sido indulgente comigo ao avisares os milhares de leitores que já nos lêem de que eu sou conhecedor de uma infinitésima parte da obra do Zizeck (larguei o perfeccionismo fonético e passei a escrever o nome do homem à anglo-saxão).
Daqui te faço igualmente uma vénia informando a maralha de que tu és um leitor impenitente do Zizeck. Consequentemente estava à espera que viesses à liça com porrada zizeckiana. Pelos vistos enganei-me e como num erro lógico cometeste o pecado da petição de princípio. Por isso dizeres que “eu tenho que explicar porquê” pede-te que nos expliques por que razão é o Zizeck um dos melhores filósofos da actualidade. E esta eu aguardo com grande ansiedade, porque talvez sejas tu que me consigas fazer compreender o núcleo da filosofia do Zizeck (se é que existe).
Todavia, convém que nos debrucemos um pouco sobre um exercício de contextualização. O documentário não foi coisinha que eu tivesse visto numa tarde chuvosa de domingo num canal mexicano. O documentário passou num cinema de culto aqui do burgo - tipo Nimas ou King ou ainda Cine 222 dos tempos da Zero - com a nata da intelectualidade transalpina a babar-se à porta como cachorros pavlovianos à espera da campainha. Então soou o gongo - Gooooooooooooong!!!! E a malta lá foi -jovens alternativos, idosos conceituatos, belas mulheres com lentes de fundo-de-copo e eu; enfim, um cortejo do que a sociedade pode oferecer de melhor. No início a coisa distrái. Ouvem-se umas gargalhadas sonoras, que vão pontuando o desenrolar do filme na escuridão, e o pessoal predispõe-se a relaxar enquanto coça os pêlos do peito (pobres dos Glabros - aqui fica também a minha compreensão) ou cheira os sovacos para se certificar que não incomoda a matrona do lado com eflúvios graviolentos. Depois as gargalhadas foram-se tornando mais esparsas e contidas; alguns já cabeceavam num sono entorpecedor e o troar de um ressonar assomava de quando em vez das filas da retaguarda. Estava o Zizeck a ser chato? Não - já desaparecera a pachorra para tanta encenação no vazio. É claro que podíamos dizer que também as coreografias da Pina Baush tentam a mesma façanha (e a meu ver, de maneira muito bem sucedida). Contudo, ali subsiste e impõe-se...o corpo. Mas isto é outra discussão.

Também eu estava à espera de ver uma grande cabeça, com grandes pensamentos, como se presencia nos documentários sobre o Foucault ou o Steiner. Ao invés surge-me ao caminho um gajo a armar ao enfant terrible da academia e, mais propriamente, da filosofia. Nisto enganaste-te redondamente. Nada há de heterodoxo (o teu mal é que tu partes sempre com ideias preconcebidas para estes debates) na postura zizekiana. Pelo contrário, ele é a imagem burilada do estériotipo académico: a pose de géniozinho que diz aquilo que lhe apetece sem se beliscar, de mente que é tão elevada que não está ao alcance do escrutínio da gente banal, do tipo que expõe os seus tiques quotidianos para se afastar do comezinho, etc. Zizeck, como escrevi, torna-se, ao fim e ao cabo, a imagem acabada do plus de jouissance. Do gesto inconsequente.
Enorme desilusão. Se o Zizeck era aquilo o que fazer aos livros? Bem sei que tu pastas num campo ético atípico que tem por premissa que as ideias não têm que possuir uma correspondência com as acções. Hitler ou Pol Pot gostariam com certeza de ir beber uma cervejinha contigo - afinal não eram mais do que boas intenções; pena é que era só para alguns. Estás portanto às avessas de um Lenine.

Finalmente, a comparação injusta e premeditada entre a sobriedade do Balibar e do Boaventura e a disforia do Zizeck. Podias ter convocado os heróis do mesmo campo. Por que não de um Badiou ou de um Sloterdjik? Para ser génio não é, apenas, necessário aparentá-lo. Já agora, tem o Zizeck algo parecido com o ser e o evenment do primeiro ou a trilogia das esferas do segundo? Ou como a Crítica da Razão Cínica do Sloterdjik (saravá Boaventura!). Não me parece. Por isso o problema não é o de uma putativa heterodoxia - que é inexistente - que se projectasse na imagem. Outros nomes, que tua aprecias, e eu também, não precisam disso para nada. Para ficarmos no pensamento sobre a política, e longe de ser exaustivo, nomes como Mouffe, Laclau, Judith Buttler, Chomsky, Boltansky, e o fantástico Ranciére não abusam da tecla do geniozinho académico. Embora o sejam. Zizeck surge na raia do estranhamento não por ser diferente, mas por ser tão marcadamente igual ao académico. Em suma, enverga uma griffe e dessa tenho, ao invés de respeito, uma peçonha irremível. Rematando, fui assolado por uma grande desilusão.

Ah, e gostei muito da vitória do Glorioso contra os red devils (um estranho caso de esquizofrenia?)

(continua)

ps: aguardo a tutoria sobre um dos maiores filósofos da nossa época (e by the way, que é isso do discurso indirecto - faz favor de responder em discurso directo: sê mais prosaico, cum camandro).