O mundo plano

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segunda-feira, março 13, 2006

Racismo descoberto

A posição intransigente contra a categorização de grupos “raciais” advogada por alguns académicos assenta em dois erros. Primeiro, um receio pouco justificável de que a categorização possa ter como efeito perverso a reificação das categorias grupais. Segundo, a ideia segundo a qual a categorização dos grupos levará necessariamente à implementação de um sistema de quotas.

A reificação que se pretende evitar está já presente no próprio fenómeno de justaposição entre desigualdades sociais e grupo étnico. Ela não é algo imposto tecnica e burocraticamente de fora, numa espécie de “colonização do mundo da vida” que gerasse artificialmente as categorias propostas. Com efeito, é justamente o processo de visibilidade das minorias qua desiguais que as reifica. Aqui reside uma distinção que convém ter sempre presente: a diferença não tem que ser necessariamente equacionada com desigualdade. Mas o facto de, geralmente, assim ser constitui o princípio dos processos de reificação. Imaginemos que encontramos uma situação ideal em que um dado grupo “racial” – digamos, os negros – se encontra igualmente distribuído por todas as esferas sociais não havendo diferença entre as médias deste grupo e as do grupo nativo. Nenhuma reificação se encontraria aqui porque se torna impossível juntar um grupo de pessoas segundo um único critério quando estas se encontram igualmente distribuídas por um conjunto de factores. E então e a raça? Não é essa a característica comum? Não – a raça só é operativa enquanto marcador quando combinada com um qualquer factor de exclusão. O que tornou a raça operativa como critério, nos tempos do purismo racial, não foi o facto objectivo da cor da pele, mas sim a associação entre cor da pele e inferioridade. Da mesma forma, o que foi operativo no anti-semitismo da Alemanha nazi não foram as especificidades físicas imaginárias, mas sim a conjugação entre estas e a narrativa segundo a qual os judeus eram naturalmente perversos. A raça é um empty-signifier que ganha coloração conforme as forças em confronto e a economia da violência num determinado contexto sócio-histórico. Por conseguinte, pressupor que a categorização reifica aquilo que afinal já se encontrava reificado pela própria dialéctica das posições minoria-maioria é uma falsa questão. É justamente nesta clivagem que se encontra a reificação.

A distinção marxista entre Klasse an sich e Klasse für sich pode aqui tornar-se útil. Podemos dizer que um grupo étnico “em si” existe numa posição objectiva na estrutura de desigualdades – a posição desigual não é mais apenas referenciada à distribuição dos meios de produção, o que obviamente não faria sentido, mas antes à combinação de factores que atribuem uma posição particular de um grupo nessa mesma estrutura. Um grupo étnico ou racial “para si” surge quando toma consciência da sua posição desigual objectiva na estrutura de distribuição de bens. A segunda implica a primeira, mas a inversa não é verdadeira.
O movimento pelos direitos civis que mobilizou a comunidade negra nos Estados Unidos nos finais dos anos 60 resultou de um ganho de consciencialização da posição objectiva ocupada na estrutura de classes. As reivindicações foram equacionadas na linguagem dos direitos civis porque havia um claro entorse na esfera legal. Mas este foi somente o reflexo – o código encontrado para traduzir um conjunto comulativo de agravos (à imagem dos Cahiers des dolences) que se tornou impossível de elidir, de tal forma a fractura era evidente. A contestação gerada pela luta pelos direitos civis era a frente de batalha da posição objectiva na sociedade norteamericana. Os negros norteamericanos tinham de facto pior habitação, pior saúde, pior educação, eram mais mal-nutridos, e ocupavam empregos mais desqualificados – tudo isto eram indicadores objectivos e não reificações fantasistas. A consciencialização dá-se quando a questão ganha uma dimensão política e se apresentam as condições necessárias para que esta seja finalmente traduzida numa linguagem grupal. Que a pertença ao grupo visível “negro” já era equacionada com os factores enumerados anteriormente não surge da instituição imaginária, mas sim de elementos objectivos. Donde nos parece que o receio pela categorização ao invés de revelar uma preocupação sensata pela cristalização dos grupos, procura sim evacuar aquilo que ela pode potencialmente trazer – o conhecimento da situação “real” de um grupo na estrutura de desigualdades, ou seja, na estrutura de classes; conhecimento esse que pode ser traduzido e gerido numa linguagem política: a linguagem das reivindicações e das oposições. Estaríamos tentados em dizer que o “horror” pela categorização não é mais do que o prolongamento do mito do Portugal miscigenador (a nação crioula).

A segunda razão é de ordem prática e afecta com particular acuidade países que, como Portugal, sofreram processos de descolonização. A este propósito opto por uma atenuação do argumento e assumo, em certa medida, o lugar de advogado do diabo. Suponhamos que existem argumentos sólidos contra as quotas (algo com o qual eu discordo plenamente, mas cuja discussão levaria mais tempo), por que razão a categorização impõe inexoravelmente a adopção de um tal sistema? Nada nos permite concluir isto. O facto de os deficientes serem categorizados enquanto tal, não impôs nenhum sistema de quotas – apenas resultou numa espécie de tratamento favorável e em raríssimas situações que é deixado ao critério das organizações.
A categorização tem como efeito imediato superar a eterna dificuldade em distrinçar os cidadãos “brancos” provenientes das colónias dos cidadãos “negros”. O facto de até agora se poder incluir nas estatísticas sobre africanos, “brancos” com nacionalidade, por exemplo, angolana baralha certamente o tipo de informação que se poderia obter caso estas tivessem uma categorização mais fina. Outro dos efeitos obscurecedores da falta de categorização é a impossibilidade de monitorar a situação da segunda e terceira geração quer dos imigrantes provenientes das colónias quer das novas vagas migratórias. Só estes dois aspectos parecem-me dignos de atenção. É claro que numa estratégia para impor o desconhecimento sobre as desigualdades e os factores que lhes estão subjacentes a melhor maneira é evitar a produção de instrumentos que nos permitam identificá-las usando o risível argumento da “reificação”.

Gostaria aqui de fazer um repto ao coordenador do observatório do racismo e xenofobia do centro europeu para o racismo e xenofobia (isto não é um título, é um manual de heráldica – o homem devia ser brazonado) para que expusesse as suas posições sobre a questão para que o debate pudesse aqui ser lançado. Parece que este, ao contrário do meu libelo anti-zeziquiano, lhe concerne mais directamente.