A crítica do Calhau
O João sofre do complexo do gato que comeu a lua. Era um gato muito comilão que queria comer tudo e à força de tanto ingerir, quando chegou a abocanhar a lua, rebentou. O João sonhou um dia que era franco-atirador, teve delírios de sniper agachado nos prédios de Sarajevo - talvez efeito de uma concussão provocada por uma queda na piscina dos pais (lá chegaremos) quando ainda de tenra idade – e pensou em singrar pelo mundo literário à procura de vítimas para abater. Resultou daqui que o João, munido de uma pressão de ar e com chumbinhos como munições resolveu que tinha que “visar alto”, como ele afirma, inspirando-se numa tirada de Martin Amis. No seu delírio narcisista julgou que estava munido de uma bazuca e quando tentou alvejar as estrelas não chegou sequer a ultrapassar as frondosas árvores do seu quintal. Os portugueses, com o seu fascínio latente por excrescências diversas, dizem que quem cospe para o ar apanha com a escarreta na tromba, o que, convenhamos, é especialmente inestético se esta for verde, gorda e luminosa.
O João deu-lhe para criticar umas eminências pardas, adular outras e correr a pontapé cães batidos que já não se levantam para lhe despedaçar a goela. Chamou a este exercício, no que é inusitadamente acompanhado por quem o segura em compadrio, a “crítica buldozer”; é o que se anuncia retumbantemente nas badanas e na contracapa. As leis do João são singelas e de fácil apreensão: um livro só é bom se se conseguir ler até ao fim; não pode ter palavras repetidas nem tão-pouco aquilo que o escriba designa de “expressões foleiras”, recorrendo a um infindável inventário de adjectivações para as frases que o João, no seu ofício de contabilista (sem nenhum desprimor para essa honrada profissão), vai desenterrando nas obras que lê. Estas “foleiradas” pululam nos livros que o crítico João tem que engolir, a contragosto, para ganhar a vidinha. A vida é difícil João, um tipo às vezes até se lhe revolve o estômago para singrar – não é João? O buldozer George quer terraplenar tudo, não deixar pedra sobre pedra, ser lava vesuvianita a colher vidas no meio literário português e para isso reinventou a crítica literária. A crítica buldozer inspira-se versatilmente no quotidiano do merceeiro. O João é um maníaco da sintaxe, tem apoplexias quando detecta uma vírgula a seguir a um verbo, tremem-lhe as mãos furibundo quando se diz que “uma mesa tem voz”, e por isso conta, e lista, e arrola tudo o que pode ferir a sua prístina sensibilidade literária. O grave – e patológico – problema do João é que no seu afã de sublinhador oficial do rei se esquece de ler os livros. Um dos casos é particularmente comovente naquilo que nos revela da frágil sanidade do João. Ao ler o “codex...” freme de gozo perante as alusões eróticas de José Rodrigues dos Santos. Lembra-se de o comparar com Henri Miller pretendendo desta forma demonstrar através do método comparativo a volúvel masculinidade do homem acobertada pelo mito da potência infalível.
Sou sensível a tudo o que se diz sobre o Miller dado que foi com ele que descobri até onde se pode esticar a literatura, largando a palavra a toda a brida e arrasando convenções e pernósticas verdades como nos é oferecido em Trópico de Câncer ou nesse opúsculo magnético de nome “Para ler na retrete”. É aliás impensável ter Updike ou Irving ou Erica Jong sem Miller (a última mais do que todos pois é uma espécie de vestal nas celebrações a Príapo). Mas de que se lembrou João? De puxar o Miller pela piça; e como num exercício de deslumbramento fetichista vai de inventariar todas as variações possíveis que o Miller atribui ao caralho. Porque o não leu esqueceu-se da melhor e minha preferida: o tesão é um pedaço de chumbo com asas! Enfim, baseando-se no Sexus e no Opus pistorum o João veio ao mundo para nos iluminar sobre as dificuldades que o Miller tinha de a pôr em pé. Por isso, somos obrigados a seguir o João, na sua vertigem eréctil, numa axiomática do tesão e da impotência – para a qual convoca um pingue-pongue de alusões sexuais entre Miller e Anais Nin. Ficamos esclarecidos: Miller não satisfazia Anais! Suponho que o João, transportando-se para o lugar do homem obscuro que possui Anais, se imagina a cavalgar a escritora e a dar-lhe orgasmos sucessivos género, comigo levavas cinco ca até andavas de gatas durante uma semana (como veremos não é nada disso: ele é um rapaz sensível quando se trata de cenas sexuais).
Não contente com pôr o pezinho em ramo verde solta novamente os seus demónios palradores e afirma peremptoriamente: gosto das crónicas, mas não gosto dos livros do António Lobo Antunes – a quem o João trata por ALA seguindo as pisadas desse mestre da brincadeira e do carnaval chamado Miguel Esteves Cardoso. Esta frase possidónia é normalmente proferida por quem nunca leu um livro do Lobo Antunes, acusação a que o João está longe de se furtar na medida em que ele próprio a assume. Como nunca lhe passou pela retina a obra-prima que é o Auto dos Danados – veja-se a este propósito as diversas referências cruzadas a este livro que o “mulher em branco” revela nas entrelinhas –; a escrita compulsiva – tão à Céline – de Os Cus de Judas; a crítica impagável do Portugal de As Naus; o salto quântico (para empregar uma expressão do infalível George) da Causa Natural das Coisas e a beleza sofrida do melhor livro português dos últimos cinco anos, Eu hei-de amar uma pedra, dizia, como nunca os leu, só tem banalidades para dizer sobre o autor. Contudo, ficamos todos muito contentes que os mestres do João sejam os do Lobo Antunes – o Céline e a Emilie Bronte -, o que para nós é motivo de regozijo e ao ALA far-lhe-á com certeza bem ao hemorreidal. ALA que se faz tarde.
A especialidade do João é adoptar um método deveras curioso. Coemça por dizer sobre um determinado autor que não o leu e depois lamenta-se de se ter sacrificado a papá-lo todo de uma assentada. É o que acontece com Rui Nunes, a quem João dedica uma concentrada atenção a compilar frases que ele, João, não aprova quanto ao sentido estético. Mas que tem o George para nos oferecer? No capítulo mais afim de Miller, o autor deslumbra-nos: “quando nos deixámos cair no chão, ela se enroscou em mim e me envolveu nos seus tentáculos” – overdoses de Júlio Verne, na infância – onde o autor descreve esquematicamente a casa de férias dos pais lembrando “a piscina da sua infância” – daí a suspeita da concussão com que iniciámos este textito. Mais à frente, quando o orgasmo se consumou, “...o coração a bater-me na garganta, descargas eléctricas percorrendo-me as pernas” – o fenómeno duracel. Não satisfeito, quer à força que partilhemos a sua vida sexual ditirâmbica e, por conseguinte, lá vem, noutra pérola, “com o dedo senti-lhe o coração entre as pernas (aconselha-se consulta de cardiologia), e ainda, “Num impulso infantil, chupei os bicos rosados e arredondados dos peitos dela” (aconselha-se consulta de psiquiatria para ultrapassar a fase oral). Mas isto é uma pálida imagem do que pode este autor verter quando se irrita. É num libelo atemorizador contra o mundo e as sombras que ele finalmente desabafa: “...tu que sofres de ausência de testículos, coito doloroso, dilatação anal, anormalidade estrutural do pénis, etcetera, etcetera” – aconselha-se urgentemente consulta de andrologia; sobretudo para anormalidade estrutural do pénis que parece que lhe cresceu na cabeça.
Terei eu algo a ganhar em criticar este livro? Não, não pertenço à conspiração silenciosa que o George com as suas manias de esquizofrénico julga urdir-se contra ele. Resume-se a minha indisposição a considerar que tudo o que encontramos no George surge assassino e desinteressante. O George faz mal à crítica, como o Rui Zink faz mal à literatura, como o Mexia faz mal à poesia, como o actual Herman José faz mal ao humor, como o Rui Tovar fazia mal ao futebol, como o José Manuel Fernandes faz mal ao jornalismo. A sua crítica, distanciada, arrogante e cobarde, releva de um narcisismo deslocado que o George faria bem em redireccionar. A exemplo, depois de ter rebaixado tudo e todos, canta loas ao Prof. Costa Pinto fazendo uso do sabujíssimo estratagema dos adoradores do Cavaco, posto que é o único merecedor de título. Muitas outras coisas irritam nas suas críticas: a repetição incessante do “senão vejamos”, “siga-me caro leitor”, “vamos por partes” – expressão que quando a utilizo só me apetece cortar os pulsos- mostra quão arredado da realidade se encontra o George por arrogar-se ao lugar de cátedra de quem tem alguma coisa a ensinar aos pacóvios. É pena, porque no meio da quinquilharia ainda se encontram alguns objectos interessantes como “o eixo do mal” ou “ o coleccionador”.
Para George, que invoca Amis numa das suas críticas “buldozer”, seria proveitoso ler o Conversations with Mrs Nabokov, desse mesmo escritor, para aprender como se faz boa crítica literária. Não basta zurzir como quem se armou de varapau e defende o terreiro dos ladrões. É sobretudo uma implicação com as obras e com os autores que a George falta manifestamente e que é tão importante para que o leitor se ligue a um livro. Nele apenas vejo o desprezo pelo literário, sem dúvida porque se convenceu que ainda há-de escrever o “Great Portuguese Novel”. Nas últimas páginas, George presenteia-nos com uma mescla de Withman com Pessoa (ainda mais explícita do que a do próprio Pessoa) com uns pós de Lautremont. Na mesma veia, e convocando Pessoa, diria: que bom é ter ESTE livro para ler e não o fazer.
(o facto de ter sido a Constança Cunha e Sá a ser convidada para o lançamento do seu livro diz-nos tudo sobre de onde vem o João e para onde pretende ir. Conhecê-los é compreendê-los)