O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

sexta-feira, abril 21, 2006

A crítica do Calhau

O universo da empáfia, da petulância e da pusilanimidade tem em Portugal um crescimento mais acelerado do que o PIB chinês. Nesta galáxia de incontornáveis personalidades que se fazem notar pela sua contundência excrementícia, pelas suas compulsões necrófilas e pela escrita tanto desinteressante como oca, avulta um objecto singular. Refiro-me ao livro do pretenso crítico JP George “Não é fácil dizer bem”. Escrevo “pretenso” não somente influenciado por uma recente estocada que lhe foi desferida por EPC no Público, encerrando-o numas tanto dubitativas quanto minorantes aspas, mas porque o li e concluí que o apensar de aspas ao seu nobre nome é inteiramente justificado.
O João sofre do complexo do gato que comeu a lua. Era um gato muito comilão que queria comer tudo e à força de tanto ingerir, quando chegou a abocanhar a lua, rebentou. O João sonhou um dia que era franco-atirador, teve delírios de sniper agachado nos prédios de Sarajevo - talvez efeito de uma concussão provocada por uma queda na piscina dos pais (lá chegaremos) quando ainda de tenra idade – e pensou em singrar pelo mundo literário à procura de vítimas para abater. Resultou daqui que o João, munido de uma pressão de ar e com chumbinhos como munições resolveu que tinha que “visar alto”, como ele afirma, inspirando-se numa tirada de Martin Amis. No seu delírio narcisista julgou que estava munido de uma bazuca e quando tentou alvejar as estrelas não chegou sequer a ultrapassar as frondosas árvores do seu quintal. Os portugueses, com o seu fascínio latente por excrescências diversas, dizem que quem cospe para o ar apanha com a escarreta na tromba, o que, convenhamos, é especialmente inestético se esta for verde, gorda e luminosa.
O João deu-lhe para criticar umas eminências pardas, adular outras e correr a pontapé cães batidos que já não se levantam para lhe despedaçar a goela. Chamou a este exercício, no que é inusitadamente acompanhado por quem o segura em compadrio, a “crítica buldozer”; é o que se anuncia retumbantemente nas badanas e na contracapa. As leis do João são singelas e de fácil apreensão: um livro só é bom se se conseguir ler até ao fim; não pode ter palavras repetidas nem tão-pouco aquilo que o escriba designa de “expressões foleiras”, recorrendo a um infindável inventário de adjectivações para as frases que o João, no seu ofício de contabilista (sem nenhum desprimor para essa honrada profissão), vai desenterrando nas obras que lê. Estas “foleiradas” pululam nos livros que o crítico João tem que engolir, a contragosto, para ganhar a vidinha. A vida é difícil João, um tipo às vezes até se lhe revolve o estômago para singrar – não é João? O buldozer George quer terraplenar tudo, não deixar pedra sobre pedra, ser lava vesuvianita a colher vidas no meio literário português e para isso reinventou a crítica literária. A crítica buldozer inspira-se versatilmente no quotidiano do merceeiro. O João é um maníaco da sintaxe, tem apoplexias quando detecta uma vírgula a seguir a um verbo, tremem-lhe as mãos furibundo quando se diz que “uma mesa tem voz”, e por isso conta, e lista, e arrola tudo o que pode ferir a sua prístina sensibilidade literária. O grave – e patológico – problema do João é que no seu afã de sublinhador oficial do rei se esquece de ler os livros. Um dos casos é particularmente comovente naquilo que nos revela da frágil sanidade do João. Ao ler o “codex...” freme de gozo perante as alusões eróticas de José Rodrigues dos Santos. Lembra-se de o comparar com Henri Miller pretendendo desta forma demonstrar através do método comparativo a volúvel masculinidade do homem acobertada pelo mito da potência infalível.
Sou sensível a tudo o que se diz sobre o Miller dado que foi com ele que descobri até onde se pode esticar a literatura, largando a palavra a toda a brida e arrasando convenções e pernósticas verdades como nos é oferecido em Trópico de Câncer ou nesse opúsculo magnético de nome “Para ler na retrete”. É aliás impensável ter Updike ou Irving ou Erica Jong sem Miller (a última mais do que todos pois é uma espécie de vestal nas celebrações a Príapo). Mas de que se lembrou João? De puxar o Miller pela piça; e como num exercício de deslumbramento fetichista vai de inventariar todas as variações possíveis que o Miller atribui ao caralho. Porque o não leu esqueceu-se da melhor e minha preferida: o tesão é um pedaço de chumbo com asas! Enfim, baseando-se no Sexus e no Opus pistorum o João veio ao mundo para nos iluminar sobre as dificuldades que o Miller tinha de a pôr em pé. Por isso, somos obrigados a seguir o João, na sua vertigem eréctil, numa axiomática do tesão e da impotência – para a qual convoca um pingue-pongue de alusões sexuais entre Miller e Anais Nin. Ficamos esclarecidos: Miller não satisfazia Anais! Suponho que o João, transportando-se para o lugar do homem obscuro que possui Anais, se imagina a cavalgar a escritora e a dar-lhe orgasmos sucessivos género, comigo levavas cinco ca até andavas de gatas durante uma semana (como veremos não é nada disso: ele é um rapaz sensível quando se trata de cenas sexuais).


Não contente com pôr o pezinho em ramo verde solta novamente os seus demónios palradores e afirma peremptoriamente: gosto das crónicas, mas não gosto dos livros do António Lobo Antunes – a quem o João trata por ALA seguindo as pisadas desse mestre da brincadeira e do carnaval chamado Miguel Esteves Cardoso. Esta frase possidónia é normalmente proferida por quem nunca leu um livro do Lobo Antunes, acusação a que o João está longe de se furtar na medida em que ele próprio a assume. Como nunca lhe passou pela retina a obra-prima que é o Auto dos Danados – veja-se a este propósito as diversas referências cruzadas a este livro que o “mulher em branco” revela nas entrelinhas –; a escrita compulsiva – tão à Céline – de Os Cus de Judas; a crítica impagável do Portugal de As Naus; o salto quântico (para empregar uma expressão do infalível George) da Causa Natural das Coisas e a beleza sofrida do melhor livro português dos últimos cinco anos, Eu hei-de amar uma pedra, dizia, como nunca os leu, só tem banalidades para dizer sobre o autor. Contudo, ficamos todos muito contentes que os mestres do João sejam os do Lobo Antunes – o Céline e a Emilie Bronte -, o que para nós é motivo de regozijo e ao ALA far-lhe-á com certeza bem ao hemorreidal. ALA que se faz tarde.


A especialidade do João é adoptar um método deveras curioso. Coemça por dizer sobre um determinado autor que não o leu e depois lamenta-se de se ter sacrificado a papá-lo todo de uma assentada. É o que acontece com Rui Nunes, a quem João dedica uma concentrada atenção a compilar frases que ele, João, não aprova quanto ao sentido estético. Mas que tem o George para nos oferecer? No capítulo mais afim de Miller, o autor deslumbra-nos: “quando nos deixámos cair no chão, ela se enroscou em mim e me envolveu nos seus tentáculos” – overdoses de Júlio Verne, na infância – onde o autor descreve esquematicamente a casa de férias dos pais lembrando “a piscina da sua infância” – daí a suspeita da concussão com que iniciámos este textito. Mais à frente, quando o orgasmo se consumou, “...o coração a bater-me na garganta, descargas eléctricas percorrendo-me as pernas” – o fenómeno duracel. Não satisfeito, quer à força que partilhemos a sua vida sexual ditirâmbica e, por conseguinte, lá vem, noutra pérola, “com o dedo senti-lhe o coração entre as pernas (aconselha-se consulta de cardiologia), e ainda, “Num impulso infantil, chupei os bicos rosados e arredondados dos peitos dela” (aconselha-se consulta de psiquiatria para ultrapassar a fase oral). Mas isto é uma pálida imagem do que pode este autor verter quando se irrita. É num libelo atemorizador contra o mundo e as sombras que ele finalmente desabafa: “...tu que sofres de ausência de testículos, coito doloroso, dilatação anal, anormalidade estrutural do pénis, etcetera, etcetera” – aconselha-se urgentemente consulta de andrologia; sobretudo para anormalidade estrutural do pénis que parece que lhe cresceu na cabeça.
Terei eu algo a ganhar em criticar este livro? Não, não pertenço à conspiração silenciosa que o George com as suas manias de esquizofrénico julga urdir-se contra ele. Resume-se a minha indisposição a considerar que tudo o que encontramos no George surge assassino e desinteressante. O George faz mal à crítica, como o Rui Zink faz mal à literatura, como o Mexia faz mal à poesia, como o actual Herman José faz mal ao humor, como o Rui Tovar fazia mal ao futebol, como o José Manuel Fernandes faz mal ao jornalismo. A sua crítica, distanciada, arrogante e cobarde, releva de um narcisismo deslocado que o George faria bem em redireccionar. A exemplo, depois de ter rebaixado tudo e todos, canta loas ao Prof. Costa Pinto fazendo uso do sabujíssimo estratagema dos adoradores do Cavaco, posto que é o único merecedor de título. Muitas outras coisas irritam nas suas críticas: a repetição incessante do “senão vejamos”, “siga-me caro leitor”, “vamos por partes” – expressão que quando a utilizo só me apetece cortar os pulsos- mostra quão arredado da realidade se encontra o George por arrogar-se ao lugar de cátedra de quem tem alguma coisa a ensinar aos pacóvios. É pena, porque no meio da quinquilharia ainda se encontram alguns objectos interessantes como “o eixo do mal” ou “ o coleccionador”.
Para George, que invoca Amis numa das suas críticas “buldozer”, seria proveitoso ler o Conversations with Mrs Nabokov, desse mesmo escritor, para aprender como se faz boa crítica literária. Não basta zurzir como quem se armou de varapau e defende o terreiro dos ladrões. É sobretudo uma implicação com as obras e com os autores que a George falta manifestamente e que é tão importante para que o leitor se ligue a um livro. Nele apenas vejo o desprezo pelo literário, sem dúvida porque se convenceu que ainda há-de escrever o “Great Portuguese Novel”. Nas últimas páginas, George presenteia-nos com uma mescla de Withman com Pessoa (ainda mais explícita do que a do próprio Pessoa) com uns pós de Lautremont. Na mesma veia, e convocando Pessoa, diria: que bom é ter ESTE livro para ler e não o fazer.

(o facto de ter sido a Constança Cunha e Sá a ser convidada para o lançamento do seu livro diz-nos tudo sobre de onde vem o João e para onde pretende ir. Conhecê-los é compreendê-los)

quinta-feira, abril 20, 2006

Tres pensamientos inimportantes



Figlio imPRODIgo

Berlusconi avança depois dos impropérios e das boçalidades proferidas por ele e por velhos amigos da coligação. Prodi ganha as eleições, mas não deixa de ser notável quão frágil é a sua coligação e quão patético é o voto de confiança dado novamente a Berlusconi por metade do povo italiano Seja como for estas eleições provam que o povo italiano é estúpido, desinformado e intoxicado pela imagem de marca Forza Italia. Provam estas como demonstram as eleições portuguesas que deram a vitória a Cavaco ou as americanas que elegeram macivamente um carniceiro como Bush. Outras imagens de marca, outros povos, outra desinformação, a mesma intoxicação.
Berlusconi teve o requinte artificioso de mudar as regras eleitorais antes do acontecimento. Atempadamente o fez e da mesma maneira colhe os frutos deixando a mais escassa margem entre o vencedor e o vencido da história da democracia Italiana -se é que se pode falar de um vencido. A ambição decadente de se autoperpetuar, um pouco ao estilo dos imperadores romanos, faz de Berlusconi o exemplo mais ilustrativo dos perigos a que a democracia está sujeita. Actualmente é fácil admitir que a democracia não funciona. Na crise de legitimidade ela não funcionava porque não representava os interesses de todos os que pertenciam à sua circuncrição. Agora ela deixa de ser credível mesmo quanto ao próprio mecanismo redistributivo. Depois das últimas eleições americanas e das eleições italianas é difícil perceber o que diz o povo quando este fala. Provavelmente não diz rigorosamente nada; e àqueles que dizem é-lhes a voz abafada pelo ruído insuportável desta multidão dessultória e irresponsável. Sim, é para aí que eu me inclino: a irresponsabilidade democrática é um dos maiores perigos das democracias contemporâneas. Bem sei que isto sugere os pensamentos de antanho dos conservadores nos primórdios da democracia. A multidão ingovernável que colocava em perigo a regência e as leis. Todavia, não podemos deixar de equacionar a irresponsabilidade eleitoral com as perversões da democracia. Será que a democracia fez um bom serviço ao eleger Bush nos Estados Unidos ou ao dar duas vitórias e uma quase vitória a Berlusconi? Tudo leva a crer que não; e no entanto são resultados legítimos decorrentes da voz do povo. Pois eu digo que a voz do povo já não conta para nada. O povo quando fala ou é com voz roufenha e imperceptível ou esganiçadamente e muitas das vezes só diz disparates. O povo que elegeu Bush ou Berlusconi não me merece respeito; tenho por ele somente temor.






Montanhismo

O texto de Montaigne sobre a amizade é uma das mais belas tentativas de encerrar em palavras esse sentimento etéreo a que se convencionou chamar amizade. Etéreo porque é isso que se depreende das palavras de Montaigne e é também isso que nos contagia ao lê-lo: a amizade enquanto amor inclassificável. Sentimento perturbante que nos enlevando nos faz simultaneamente querer ficar presos à terra. O mais telúrico dos sentimentos, descrevo-o na sua infalibilidade, e se ela por vezes se trai ou falha na sua própria revelação é porque não era verdadeira amizade, como nos ensina Montaigne. A amizade não tem trocas nem sacrifícios. Quando Montaigne se interroga sobre a razão de amar um amigo só lhe ocorre o sentimento mais puro e verdadeiro para expressar o que afinal se encontra inamovível: Parce que c’était lui; parce que c’était moi.

Leio-o sempre com um prazer inexcedível, na certeza porém de que a amizade é um resquício da antiguidade clássica, uma ruína, que hoje em dia só se encontra sob a forma de palimpsesto.

Mexiofobia

Vi por entreposta pessoa, vi com estes que a terra há-de comer, se a tanto se lhe oferecer palato e disposição, o que diz o Mexia sobre a literatura. E este rapaz que sempre me ofuscou com as suas tiradas flamejantes e os seus pensamentos relampejantes, diz agora que a literatura se baseia na fantasia. Pedra angular de todo o saber – diríamos ainda com Bloom “where shall wisdom be found”, bom aqui não é com certeza -, a velha questão de saber se é a vida que imita a literatura ou a literatura que imita a vida é de novo resgatada e desta feita por mão de mestre. Ars longa vita brevis, portanto. Responde o plumitivo “muita da grande literatura nasceu da imaginação ou da fantasia (...) muitos escritores, nomeadamente dos géneros mais radicais, não viveram nada do que escreveram”. Dei comigo a pensar se isto não seria uma fraude mais disseminada do que parece a priori. Questões importantes revolveram-se-me no cérebro: terá a Ana Faria vivido tudo aquilo com os queijinhos frescos? Será que o Luís nunca foi a Paris e em vez disso foi ao Barreiro? Será que Ana com a sua imaginação faiscante transformou as gruas da Lisnave no austero e geométrico desenho da torre eifel? Tantas questões que ficam sem resposta, suspensas nessa dobra mal definida entre a vida e o literário.
Mais à frente jura Mexia que Sade “terá sido razoavelmente libertino, mas nada que se compare aos infernos sexuais que deixou associados ao seu nome”. Aqui temos que reconhecer que a fleuma e despreocupação que Mexia denota ao referir-se às perversões de Sade só nos podem merecer admiração. Para Mexia as coisitas do Sade sabem a uma razoável libertinagem porque comparado com ele, sugerimos, Sade foi um debutante. Sempre atormentou a jovem direita intelectual que Sade pudesse de facto ter sido o perverso violento e maníaco que deixa entrever nos seus textos. Mas na verdade foi mesmo; embora custe saber que houve um gajo que além de escrever a levou bem vivida –se descontarmos as inúmeras vezes em que ele foi bater com os costados na Bastilha.
Por fim, Mexia remata com frase inspirada que “escrever é uma modalidade de viagem, e é natural que queiramos viajar por sítios onde nunca fomos”. Principalmente se andarmos à boleia.

quinta-feira, abril 06, 2006

Oni soi qui mal y pense.

OK – regressei. Peregrinei pelo deserto, comi gafanhotos e escolopendras, preveni-me de um diário de asceta e agora volto em gesto epifânico, eventualmente última aparição de alma humana neste blogue em lento estiolar.

A razão do meu regresso tem o seu quê de religioso, pois move-se pelo mesmo ódio que só os verdadeiros fiéis podem dirigir contra os falsos prosélitos. O meu ódio (e talvez ódio seja uma palavra demasiado forte; substitua-mo-la então por desespero), o meu desespero perante a negação do pensamento, a subversão da ideia, a emasculação do raciocínio. Este sentimento que me assola logo pela manhã, ganha corpo no correr da tarde e floresce como uma gangrena lá pela noitinha resume-se a uma palavra: o canhoto. Este blogue enerva-me. Por conseguinte, reapareci para partilhar com o mundo os últimos dislates e inanidades de que por lá se faz eco.

Diz-se “laico não é qualificativo de cidadão”

Absurda porque “laico” não é qualificativo de cidadão (como não o são, também, por exemplo, “quente”, “caudaloso” ou “frondoso”). Laico é qualificativo de Estado e significa neutralidade religiosa do mesmo para que todos os cidadãos possam usufruir não só de liberdade religiosa mas também de liberdade em relação à religião.

Cum caneco e eu a julgar que eles tinham apoiado um que se diz laico e republicano. Era afinal o Estado aquilo de que ele se reclamava? A incorporação do Estado na pessoa do candidato como a dupla pessoa do Rei? E se só o Estado é laico (mas poderá também ser quente e frondoso? E por que não?) o que se dirá então de um cidadão que acredita que o estado deve ser laico e não religioso? Será um “lacão”? Não, talvez um liberal. Mas há liberais que não são laicos e não deixam por isso de ser liberais. Ou não?

O conceito de laicismo: um Estado que tolera diversas religiões - diz resumidamente RPP. Mas será? O problema é que o laicismo foi desvirtuado. Ele é a França a reclamar-se de um Estado laico. Ele é Soares a dizer que é laico e republicano. Ele é a discussão sobre a constituição europeia que pende entre reconhecer a herança cristã (a bom porto chegaríamos se reconhecessemos igualmente a muçulmana) e assumir-se como laica. E a multiplicidade de vulgarizações do laicismo vai surtindo os seus efeitos e calando fundo. Só o Estado é laico porque tolera diferentes religiões, e por isso se considera...democrático e liberal. Pena é que o elemento importante desta equação tenha desaparecido: precisamente, o cidadão laico. Porque este não é apenas o que tolera; na verdade se alguma coisa corresponde ao laicismo é o movimento contrário, o de rejeitar esse pathos tolerante que se alicerça na transcendência. O laico pugna contra o dogma, rejeita a ideia segundo a qual a fé se firma neste último e portanto é ininterpelável, toma uma posição de escrutínio perante a justaposição entre lei religiosa e humana e interroga a religião quanto ao seu cerne – a lógica salvífica. Por conseguinte, ser laico é antes de tudo o mais assumir uma posição crítica perante a(s) Igreja(s) e a(s) sua(s) doutrina(s). Na dicussão sobre a laicidade do Estado evacuou-se esta preocupação que foi substituída, higienicamente, pela ideia de tolerância. Não serão estes apagamentos o sinal óbvio de “fascismo social”? A Igreja convive com um Estado laico na premissa de que este se atém a aceitá-la e a não definir o lugar da religião na comunidade, mas é-lhe impensável viver com uma comunidade de cidadãos laicos que passam as suas doutrinas pelo crivo da racionalidade. Ora, este binómio é constituite dos dois planos diferentes de assunção do laicismo. Parece que ser laico é abençoar todos os cultos, quando na verdade ser laico é não abençoar nenhum.

Deparo-me mais acima com a verrina costumeira dedicada a Boaventura. Já disse e repito: não concordo com muita coisa que o Boaventura diz, mas se quiser divulgar as minhas opiniões sobre ele é bom que vá munido com algo mais do que dixotes e leituras caseiras. RPP compara Boaventura a Manuel Alegre quanto à sua irresponsabilidade. Ora, só isto já é exemplo suficiente de irresponsabilidade. Parece que Alegre comparou a situação actual do Portugal contemporâneo com o fascismo de Salazar. E logo isto deu azo a acusação por parte do canhoto de irresponsabilidade; e porque não se podia deixar passar um coelho sem canhoar o outro, lá se trouxe o Boaventura à colação para criticar a expressão, também ela irresponsável, “fascismo social”.

Comparar com a inquisição será branquear a mesma? E comparar com o despotismo iluminado será incensar este? Nestas comparações a que se aplicou o ferrete do não-dito parece que o que se encontra verdadeiramente subjacente é um princípio de salvação quer do objecto comparado quer da instância utilizada para a comparação. Este raciocínio de benevolência anémica e retrospectiva deve ser deliberadamente rejeitado. Não se pode comparar com o holocausto porque é diminuir o horror que este representou. Mas perante este imperativo categório o que se salva é o holocausto pela simples razão de que a comparação é dessacralizante. Não é verdade que na teologia clássica nada pode ser comparado com Deus? E não é justamente esta impossibilidade que lhe outorga a condição de absoluto? Estamos numa fronteira muito perigosa. O que tem acontecido com esta proibição instituída de comparar “com” o holocausto, senão a sacralização do mesmo. Não é o problema da sua minorização que preocupa os Judeus; é antes o medo da dessacralização: apenas um acontecimento divino na sua proporção poderia levar a uma terra prometida por um deus. Fecha-se o círculo: a sacralização do holocausto é absolutamente instrumental para o mito do regresso do povo judeu.

Ressalvadas as distâncias é difícil não perceber que este abafamento das comparações com o fascismo pode ser interpretado da mesma forma. A anulação do fascismo como objecto de comparação revela o mesmo empenho em sacralizar um momento histórico. Nem tão-pouco se compreende porque é que a utilização do termo fascismo apenas remete para o salazarismo que é o que se depreende da comparação –certamente inusitada- entre o desabafo de Alegre e o conceito de Boaventura. Esta visão redutora que presentifica o fascismo enquanto memória de um regime esquece por completo que o fascismo foi e é um conjunto de práticas. Da mesma forma o totalitarismo não pode ser reduzido ao estalinismo, embora através deste possa ser historicamente sinalizado. Se assim é, qual a razão para dizer que o “fascismo social” é apenas uma metáfora e não um conceito? (havia que discutir esta distinção singular, pois as fronteiras entre os dois termos estão longe de ser claras e muito menos de serem facilmente operacionalizadas, mas isso levar-nos-ia a uma deriva por outras paragens). Ao contrário do que diz RPP, se quisermos ser objectivos, é justamente o termo fascismo social que nos ajuda a estabelecer uma correspondência entre traços de regimes fascistas e práticas actuais que podem ser identificadas como tal. Se mais não fosse preciso, bastava ler o artigo do Guardian sobre as universidades americanas (que é citado no canhas) para perceber que se assiste a um reinvestimento em práticas que podemos sem grande rebuço considerar como propriamente fascistas. Estaremos a desvalorizar o conceito ao utilizá-lo num outro contexto historico-social? Pelo contrário, se alguma coisa, estamos a reactualizá-lo para nomear “coisas” que dificilmente podem ser nomeadas dentro do quadro da democracia. Não é apenas o silenciamento das práticas é também o silenciamento da nomeação que afecta a nossa liberdade e a forma como nos representamos perante todos os outros agentes.

É neste sentido que só nos podemos espantar com as seguintes declarações que mais uma vez patenteiam uma extrema desonestidade intelectual

expressão
“fascismo social” proposta e divulgada por Boaventura Sousa Santos (BSS). Com a expressão quer o autor classificar o carácter não democrático do “regime social”, por contraposição com o do “regime político”. Como no regime social não há mecanismos de decisão próprios para além dos políticos, a expressão é metafórica, não conceptual, apesar da fuga para a frente ensaiada quando se fala do “poder de veto” sobre o social dos “actores não estatais”.

Mas não é nada disto que diz Boaventura no artigo para que o canhoto nos remete. Então que diz ele: “trata-se de uma nova constelação sociopolítica caracterizada pelo confinamento da democracia a um campo político cada vez mais estreitamente definido” onde os actores não-estatais assumem um poder de veto sobre a vida dos despossuídos de poder. E isto faz toda a diferença. Ocorrem-nos facilmente miríadas de exemplos que se integram perfeitamente nesta descrição: o poder total de despedir alguém que não possui qualquer influência no mecanismo que o exclui, acção que é por essa razão absolutamente heterodeterminada. Este conjunto de micro e macro poderes que esvaziam a capacidade de autodeterminação do seu sentido positivo (estaremos então em presença da ilusão de autodeterminação, mas que é autodeterminação meramente negativa dado que apenas responde ao desejo de não ser excluído), parece-me merecer o apropriado termo de fascismo social. Não era este o mecanismo de imposição dos fascismos políticos? Não há nada de metafórico nisto, assim como não havia nada de metafórico nas listas negras do mccarthismo.

Começo a perceber a origem do título do blogue. É canhoto porque por lá se passa a vida a bater punhetas – não tem nada a ver com o posicionamento político.


(ps: mas não sou cristo; sou o baptista)

sexta-feira, março 24, 2006

O monólogo do crítico ou de boas-vontades está o inferno cheio

Caro anónimo, os comentários são sempre bem-vindos. Não tenho eu feito outra coisa senão exortar os restantes bloguistas a participarem. Se há coisa que me chateia é de facto monologar. Mas por que não, caro anónimo, dar uma ar da sua graça e escrever qualquer coisa de verdadeiramente construtivo? Algo que acrescente valor à discussão. Sabe, é que para discutir são pelo menos necessários dois.

quinta-feira, março 23, 2006

Está a brincar, Sr. Bruno?

1. A estupefacção do Bruno deixa-me perplexo. O que será que o Bruno não entendeu no meu texto? Numa primeira análise, nada. Isto coloca-me um conjunto de questões deveras sério: estarei eu a escrever de forma tão abstrusa que não se entenda nada? Serão os meus argumentos tão mal construídos que se possa falhar por completo o cerne do problema? Questões com as quais me tenho que confrontar num esforço auto-reflexivo.

2. O problema é o conceito de "reificação" - o que é que reifica? Mas aqui a questão coloca-se justamente no prório mecanismo que supostamente reifica as minorias, i.e., as estatísticas. É a propósito das consequências deste mecanismo que eu faço o meu comentário e não da existência de categorização o que seria completamente absurdo. Ou admitimos que um grupo nem sempre é reificado ou supomos que um grupo é sempre reificado, se assim for então à que explicar por que razão a categorização estatística reifica.


Reificação é o processo de considerar algo (neste caso um grupo) como se fosse uma coisa. Em termos marxistas é a transformação de substâncias em mercadorias. Seja como for é sempre a coisificação, a objectivação; e no caso dos processos de racialização consubstancia-se na naturalização de um grupo. O termo “racialização” é o conceito chave aqui. Como diz o Bruno (e eu estou longe de discordar) o racismo opera através de uma categorização que é investida de valor negativo. Discordo em absoluto que o racismo possa ser investido de valor positivo. Este é simplesmente o argumento dos sectores conservadores - o famoso: “mas eles também são racistas em relação aos brancos” - ou o argumento primário contra o multiculturalismo - "se os encerrarmos nas suas identidades ainda se tornam mais racistas em relação à sociedade de acolhimento" pela simples razão que o racismo opera numa estrutura de desigualdade de recursos – sejam eles simbólicos, económicos, políticos ou sociais. Para que o termo racismo possua um potencial heurístico tem que definir os seus próprios limites.

Não será por acaso que RPP desalojou o conceito de "racialização" pelo bem menos evidente e mais acéptico "outrismo". Contudo, nunca RPP explicou qual é a especificidade do outrismo baseado na “raça”. Na medida em que o outrismo é sempre a enunciação (e exclusão) de um "outro", com a consequente criação de uma oposição friend/foe resultante da própria estrutura da relação, convinha saber por que razão se pode este alicerçar na "raça", no fenotipo enquanto marcador racial. O "outrismo" engloba qualquer relação social deste tipo (pode, por exemplo, ocorrer numa relação construída segundo a oposição bonitos/feios ou ricos/pobres ou qualquer relação que construa uma colectividade, mesmo que imaginariamente, através dos mecanismos da exclusão) a sua especificidade no que toca ao racismo nunca é explicitada por RPP. Ficamos assim com um conceito que serve para tudo e, como no velho paradoxo filosófico, não serve para nada.

3. O Bruno convoca, evidentemente, a definição de Miles. Mas fico estupefacto com o desconhecimento que ele mostra possuir da teoria da racialização. E sinceramente não vejo onde ele me contradiz. Estamos de acordo com a categorização, mas não é este um processo de reificação? Não era Franz Fanon que dizia que a categoria "branco" só existia por oposição à categoria "negro" enquando incorporadora do "mal"? Não era justamente a coisificação da consciência dos negros que os encerrava numa categoria inferior? Eventualmente houve alguma confusão com a minha alusão à "classe para si". Há dois níveis de argumentação no post. Por um lado, e este é o fulcro do post, a reificação pré-existe à categorização estatística - nisso parece que o Bruno está de acordo. Donde se torna inverosímel dizer que as categorias estatísticas reificam o que afinal pelo próprio processo de categorização se encontra já reificado. Por outro lado, não só os grupos já se econtram reificados como a categorização étnica pode, em larga medida, gerar um efeito político. Daí o exemplo dos negros norteamericanos. O paraleo com a classe para si servia para ilustrar este ponto. Tal como a Klasse fur sich, somente quando o grupo étnico toma consciência que existe numa posição desigual e que é alvo de objectivação do seu fenotipo se pode este tornar actor político. Uma tal condição não surge necessariamente da posição de classe (ou apenas da posição de classe); envolve as mais das vezes empreendedores políticos, tais como líderes carismáticos ou pessoas colocadas em lugares estratégicos na relação de forças que se estabelece entre minoria e maioria. Este é, a meu ver, o salto qualitativo que é dado quando se assume a posição de interlocutor político. Por conseguinte, perguntava-me se não será o receio de uma emergência política dos grupos étnicos que condiciona o pensamento sobre o racismo e força ao apagamento dos processos de racialização pela sociedade portuguesa.

Nunca eu disse que apenas em casos de exploração de classe tal fenómeno acontecia, desde logo porque menciono o caso do anti-semitismo nazi onde obviamente o modelo da dialéctica das classes não pode ser aplicado. Contudo, não deixa de persistir a desigualdade: não eram os judeus definidos pelos seus atributos infra-humanos? Não é o anti-semitismo organizado através do pressuposto de que os judeus eram o elemento impuro da comunidade? O nazismo traduziu e elevou essa impureza, esse elemento poluidor, numa somatização do judeu. Embora esta já existisse anteriormente, passava doravante a alicerçar-se no conhecimento científico que elegeu a antropometria como forma de classificar, e portanto reificar, a (des)humanidade do judeu.

4. Finalmente, fiquei eu e ficámos todos sem saber o que pensa o Bruno sobre as categorias estatísticas e sobre o argumento segundo o qual o efeito destas seria a reificação. Isto era mais importante do que insistir em verdades de Lapalice como a do racismo operar através de categorizações. Ficamos na ignorância como ficámos sem saber por que razão gostava o Bruno do Zizek. Tudo a bem do espírito dialéctico.

quarta-feira, março 22, 2006

Inchalá

Deus é um homem senil e de provecta idade que se prosta perante o diabo que entretanto se tornou seu amigo. A virgem Maria escuta a leitura de uma estória obscena enquanto se desenrola uma cena de tensão sexual entre ela e o Diabo. Jesus é retratado como um atrasado mental (ou como agora se diz "pessoa incapacitada") e numa das cenas tenta desesperadamente beijar os seios de sua mãe. Finalmente, Deus, a Virgem e Cristo aplaudem efusivamente o Diabo.

Não, isto não é um repentismo de uma mente maléfica -ou seja, eu- que decidiu extemporaneamente macular toda uma religião ofendendo gratuitamente aqueles que a professam. Nem tão-pouco uma das últimas tentativas de retornar a Artaud ou aos poetas malditos. Nem sequer uma pouco original e redundante iniciativa de duplicação do universo Monteirista (leia-se aquele a quem chamavam César Monteiro, o grande gnóstico da porcalhisse, e não o Manel, o grande prelado da sacanisse).

Isto é a descrição de um filme de Otto Preminger dos idos anos oitenta que nunca chegou a ver a luz do dia dado que foi embargado pelo governo austríaco (aliás, pergunto-me se o César Monteiro não se baseou neste filme maldito para recriá-lo na cena de entrada de A bacia de John Wayne: "je suis le Demon e j’avais des colhons!").

" Eu quero que o Polo Norte se foda!"


Como escrevi em post anterior sobre as caricaturas de Maomé a ofensa só tem eco no espaço simbólico que a entende como ofensa. Para os muçulmanos insinuar que Maomé tinha desejos ou fantasias sexuais seria corriqueiro dado que Maomé não se fazia nunca rogado quando era para afogar o ganso, esconder o salame ou desenferrujar o martelo. Daí que o espaço simbólico onde a explicitação do sexo através do sagrado pode ser considerado uma blasfémia é, por regra, o do cristianismo.

Aliás não foi exactamente sobre isso que César Monteiro lançou o seu olhar escarninho ao criar o João de Deus? O pornógrafo consumado que só pensava em crica? Mas se se aceita que os cristãos fiquem tão incomodados perante insinuações ou explícitas referências sexuais envolvendo os seus símbolos mais sagrados, por que será tão problemático aceitar que os muçulmanos se sintam ofendidos com as representações de Maomé? Liberdade de expressão? Como diria César Monteiro "vamos embora Luciano que já enganámos mais um!".

terça-feira, março 21, 2006

Ó nuno, e que tal disponibilizares para a malta o link para o tal artigo do Zizek sobre o brokeback mountain? Fartei-me de o procurar na net e não encontrei.

Racismo sem raça

Acerca do post “Racismo descoberto”, do Nuno filoxera, ocorrem-me alguns comentários. De facto concordo com o Nuno em que a questão não se resolve facilmente com chavões como “reificação”, mas estou em total desacordo com as conclusões a que chega.
Fico um pouco estupefacto quando diz que “é justamente o processo de visibilidade das minorias qua desiguais que as reifica”. O que é esta visibilidade de um grupo como desigual (inferior ou superior) senão uma categorização, a que nomeia antes de mais o próprio grupo? Seguida de um investimento de valor negativo ou positivo nesse mesmo grupo. Ora bem, no caso dos grupos raciais trata-se de investir um traço fisionómico ou cultural de um determinado valor, que passa a sobredeterminar, aos olhos do categorizador, todos os indivíduos do grupo categorizado. Os modos pelos quais essa categorização se fez e as razões a ela associadas são questões que só se podem responder historicamente, para cada situação. O colonialismo e a perseguição religiosa aos judeus estão na origem de formas de descriminação a que damos o nome genérico de racismo, mas que assumiram e assumem formas muito diferentes.
Mas o que interessa é que a categorização não é apenas uma operação neutra de ordenação cognitiva do real. Ela tem efeitos, e no caso da categorização racial, como tu bem dizes, corresponde à atribuição de uma inferioridade que se sobrepõe (mas não só) à exploração de classe.
Não estou a por em causa as lutas igualitárias dos negros americanos. Se a cor da pela os colocava numa situação de opressão comum, em virtude justamente da atribuição de inferioridade pela pertença a uma categoria, então essa opressão deve ser nomeada e combatida. Devemos denunciar e combater o racismo, sem portanto ceder à tentação de admitir que existem raças.