O mundo plano

Ciência, política, cinema, economia, poesia... "A Romance of many dimensions"

sexta-feira, abril 21, 2006

A crítica do Calhau

O universo da empáfia, da petulância e da pusilanimidade tem em Portugal um crescimento mais acelerado do que o PIB chinês. Nesta galáxia de incontornáveis personalidades que se fazem notar pela sua contundência excrementícia, pelas suas compulsões necrófilas e pela escrita tanto desinteressante como oca, avulta um objecto singular. Refiro-me ao livro do pretenso crítico JP George “Não é fácil dizer bem”. Escrevo “pretenso” não somente influenciado por uma recente estocada que lhe foi desferida por EPC no Público, encerrando-o numas tanto dubitativas quanto minorantes aspas, mas porque o li e concluí que o apensar de aspas ao seu nobre nome é inteiramente justificado.
O João sofre do complexo do gato que comeu a lua. Era um gato muito comilão que queria comer tudo e à força de tanto ingerir, quando chegou a abocanhar a lua, rebentou. O João sonhou um dia que era franco-atirador, teve delírios de sniper agachado nos prédios de Sarajevo - talvez efeito de uma concussão provocada por uma queda na piscina dos pais (lá chegaremos) quando ainda de tenra idade – e pensou em singrar pelo mundo literário à procura de vítimas para abater. Resultou daqui que o João, munido de uma pressão de ar e com chumbinhos como munições resolveu que tinha que “visar alto”, como ele afirma, inspirando-se numa tirada de Martin Amis. No seu delírio narcisista julgou que estava munido de uma bazuca e quando tentou alvejar as estrelas não chegou sequer a ultrapassar as frondosas árvores do seu quintal. Os portugueses, com o seu fascínio latente por excrescências diversas, dizem que quem cospe para o ar apanha com a escarreta na tromba, o que, convenhamos, é especialmente inestético se esta for verde, gorda e luminosa.
O João deu-lhe para criticar umas eminências pardas, adular outras e correr a pontapé cães batidos que já não se levantam para lhe despedaçar a goela. Chamou a este exercício, no que é inusitadamente acompanhado por quem o segura em compadrio, a “crítica buldozer”; é o que se anuncia retumbantemente nas badanas e na contracapa. As leis do João são singelas e de fácil apreensão: um livro só é bom se se conseguir ler até ao fim; não pode ter palavras repetidas nem tão-pouco aquilo que o escriba designa de “expressões foleiras”, recorrendo a um infindável inventário de adjectivações para as frases que o João, no seu ofício de contabilista (sem nenhum desprimor para essa honrada profissão), vai desenterrando nas obras que lê. Estas “foleiradas” pululam nos livros que o crítico João tem que engolir, a contragosto, para ganhar a vidinha. A vida é difícil João, um tipo às vezes até se lhe revolve o estômago para singrar – não é João? O buldozer George quer terraplenar tudo, não deixar pedra sobre pedra, ser lava vesuvianita a colher vidas no meio literário português e para isso reinventou a crítica literária. A crítica buldozer inspira-se versatilmente no quotidiano do merceeiro. O João é um maníaco da sintaxe, tem apoplexias quando detecta uma vírgula a seguir a um verbo, tremem-lhe as mãos furibundo quando se diz que “uma mesa tem voz”, e por isso conta, e lista, e arrola tudo o que pode ferir a sua prístina sensibilidade literária. O grave – e patológico – problema do João é que no seu afã de sublinhador oficial do rei se esquece de ler os livros. Um dos casos é particularmente comovente naquilo que nos revela da frágil sanidade do João. Ao ler o “codex...” freme de gozo perante as alusões eróticas de José Rodrigues dos Santos. Lembra-se de o comparar com Henri Miller pretendendo desta forma demonstrar através do método comparativo a volúvel masculinidade do homem acobertada pelo mito da potência infalível.
Sou sensível a tudo o que se diz sobre o Miller dado que foi com ele que descobri até onde se pode esticar a literatura, largando a palavra a toda a brida e arrasando convenções e pernósticas verdades como nos é oferecido em Trópico de Câncer ou nesse opúsculo magnético de nome “Para ler na retrete”. É aliás impensável ter Updike ou Irving ou Erica Jong sem Miller (a última mais do que todos pois é uma espécie de vestal nas celebrações a Príapo). Mas de que se lembrou João? De puxar o Miller pela piça; e como num exercício de deslumbramento fetichista vai de inventariar todas as variações possíveis que o Miller atribui ao caralho. Porque o não leu esqueceu-se da melhor e minha preferida: o tesão é um pedaço de chumbo com asas! Enfim, baseando-se no Sexus e no Opus pistorum o João veio ao mundo para nos iluminar sobre as dificuldades que o Miller tinha de a pôr em pé. Por isso, somos obrigados a seguir o João, na sua vertigem eréctil, numa axiomática do tesão e da impotência – para a qual convoca um pingue-pongue de alusões sexuais entre Miller e Anais Nin. Ficamos esclarecidos: Miller não satisfazia Anais! Suponho que o João, transportando-se para o lugar do homem obscuro que possui Anais, se imagina a cavalgar a escritora e a dar-lhe orgasmos sucessivos género, comigo levavas cinco ca até andavas de gatas durante uma semana (como veremos não é nada disso: ele é um rapaz sensível quando se trata de cenas sexuais).


Não contente com pôr o pezinho em ramo verde solta novamente os seus demónios palradores e afirma peremptoriamente: gosto das crónicas, mas não gosto dos livros do António Lobo Antunes – a quem o João trata por ALA seguindo as pisadas desse mestre da brincadeira e do carnaval chamado Miguel Esteves Cardoso. Esta frase possidónia é normalmente proferida por quem nunca leu um livro do Lobo Antunes, acusação a que o João está longe de se furtar na medida em que ele próprio a assume. Como nunca lhe passou pela retina a obra-prima que é o Auto dos Danados – veja-se a este propósito as diversas referências cruzadas a este livro que o “mulher em branco” revela nas entrelinhas –; a escrita compulsiva – tão à Céline – de Os Cus de Judas; a crítica impagável do Portugal de As Naus; o salto quântico (para empregar uma expressão do infalível George) da Causa Natural das Coisas e a beleza sofrida do melhor livro português dos últimos cinco anos, Eu hei-de amar uma pedra, dizia, como nunca os leu, só tem banalidades para dizer sobre o autor. Contudo, ficamos todos muito contentes que os mestres do João sejam os do Lobo Antunes – o Céline e a Emilie Bronte -, o que para nós é motivo de regozijo e ao ALA far-lhe-á com certeza bem ao hemorreidal. ALA que se faz tarde.


A especialidade do João é adoptar um método deveras curioso. Coemça por dizer sobre um determinado autor que não o leu e depois lamenta-se de se ter sacrificado a papá-lo todo de uma assentada. É o que acontece com Rui Nunes, a quem João dedica uma concentrada atenção a compilar frases que ele, João, não aprova quanto ao sentido estético. Mas que tem o George para nos oferecer? No capítulo mais afim de Miller, o autor deslumbra-nos: “quando nos deixámos cair no chão, ela se enroscou em mim e me envolveu nos seus tentáculos” – overdoses de Júlio Verne, na infância – onde o autor descreve esquematicamente a casa de férias dos pais lembrando “a piscina da sua infância” – daí a suspeita da concussão com que iniciámos este textito. Mais à frente, quando o orgasmo se consumou, “...o coração a bater-me na garganta, descargas eléctricas percorrendo-me as pernas” – o fenómeno duracel. Não satisfeito, quer à força que partilhemos a sua vida sexual ditirâmbica e, por conseguinte, lá vem, noutra pérola, “com o dedo senti-lhe o coração entre as pernas (aconselha-se consulta de cardiologia), e ainda, “Num impulso infantil, chupei os bicos rosados e arredondados dos peitos dela” (aconselha-se consulta de psiquiatria para ultrapassar a fase oral). Mas isto é uma pálida imagem do que pode este autor verter quando se irrita. É num libelo atemorizador contra o mundo e as sombras que ele finalmente desabafa: “...tu que sofres de ausência de testículos, coito doloroso, dilatação anal, anormalidade estrutural do pénis, etcetera, etcetera” – aconselha-se urgentemente consulta de andrologia; sobretudo para anormalidade estrutural do pénis que parece que lhe cresceu na cabeça.
Terei eu algo a ganhar em criticar este livro? Não, não pertenço à conspiração silenciosa que o George com as suas manias de esquizofrénico julga urdir-se contra ele. Resume-se a minha indisposição a considerar que tudo o que encontramos no George surge assassino e desinteressante. O George faz mal à crítica, como o Rui Zink faz mal à literatura, como o Mexia faz mal à poesia, como o actual Herman José faz mal ao humor, como o Rui Tovar fazia mal ao futebol, como o José Manuel Fernandes faz mal ao jornalismo. A sua crítica, distanciada, arrogante e cobarde, releva de um narcisismo deslocado que o George faria bem em redireccionar. A exemplo, depois de ter rebaixado tudo e todos, canta loas ao Prof. Costa Pinto fazendo uso do sabujíssimo estratagema dos adoradores do Cavaco, posto que é o único merecedor de título. Muitas outras coisas irritam nas suas críticas: a repetição incessante do “senão vejamos”, “siga-me caro leitor”, “vamos por partes” – expressão que quando a utilizo só me apetece cortar os pulsos- mostra quão arredado da realidade se encontra o George por arrogar-se ao lugar de cátedra de quem tem alguma coisa a ensinar aos pacóvios. É pena, porque no meio da quinquilharia ainda se encontram alguns objectos interessantes como “o eixo do mal” ou “ o coleccionador”.
Para George, que invoca Amis numa das suas críticas “buldozer”, seria proveitoso ler o Conversations with Mrs Nabokov, desse mesmo escritor, para aprender como se faz boa crítica literária. Não basta zurzir como quem se armou de varapau e defende o terreiro dos ladrões. É sobretudo uma implicação com as obras e com os autores que a George falta manifestamente e que é tão importante para que o leitor se ligue a um livro. Nele apenas vejo o desprezo pelo literário, sem dúvida porque se convenceu que ainda há-de escrever o “Great Portuguese Novel”. Nas últimas páginas, George presenteia-nos com uma mescla de Withman com Pessoa (ainda mais explícita do que a do próprio Pessoa) com uns pós de Lautremont. Na mesma veia, e convocando Pessoa, diria: que bom é ter ESTE livro para ler e não o fazer.

(o facto de ter sido a Constança Cunha e Sá a ser convidada para o lançamento do seu livro diz-nos tudo sobre de onde vem o João e para onde pretende ir. Conhecê-los é compreendê-los)

quinta-feira, abril 20, 2006

Tres pensamientos inimportantes



Figlio imPRODIgo

Berlusconi avança depois dos impropérios e das boçalidades proferidas por ele e por velhos amigos da coligação. Prodi ganha as eleições, mas não deixa de ser notável quão frágil é a sua coligação e quão patético é o voto de confiança dado novamente a Berlusconi por metade do povo italiano Seja como for estas eleições provam que o povo italiano é estúpido, desinformado e intoxicado pela imagem de marca Forza Italia. Provam estas como demonstram as eleições portuguesas que deram a vitória a Cavaco ou as americanas que elegeram macivamente um carniceiro como Bush. Outras imagens de marca, outros povos, outra desinformação, a mesma intoxicação.
Berlusconi teve o requinte artificioso de mudar as regras eleitorais antes do acontecimento. Atempadamente o fez e da mesma maneira colhe os frutos deixando a mais escassa margem entre o vencedor e o vencido da história da democracia Italiana -se é que se pode falar de um vencido. A ambição decadente de se autoperpetuar, um pouco ao estilo dos imperadores romanos, faz de Berlusconi o exemplo mais ilustrativo dos perigos a que a democracia está sujeita. Actualmente é fácil admitir que a democracia não funciona. Na crise de legitimidade ela não funcionava porque não representava os interesses de todos os que pertenciam à sua circuncrição. Agora ela deixa de ser credível mesmo quanto ao próprio mecanismo redistributivo. Depois das últimas eleições americanas e das eleições italianas é difícil perceber o que diz o povo quando este fala. Provavelmente não diz rigorosamente nada; e àqueles que dizem é-lhes a voz abafada pelo ruído insuportável desta multidão dessultória e irresponsável. Sim, é para aí que eu me inclino: a irresponsabilidade democrática é um dos maiores perigos das democracias contemporâneas. Bem sei que isto sugere os pensamentos de antanho dos conservadores nos primórdios da democracia. A multidão ingovernável que colocava em perigo a regência e as leis. Todavia, não podemos deixar de equacionar a irresponsabilidade eleitoral com as perversões da democracia. Será que a democracia fez um bom serviço ao eleger Bush nos Estados Unidos ou ao dar duas vitórias e uma quase vitória a Berlusconi? Tudo leva a crer que não; e no entanto são resultados legítimos decorrentes da voz do povo. Pois eu digo que a voz do povo já não conta para nada. O povo quando fala ou é com voz roufenha e imperceptível ou esganiçadamente e muitas das vezes só diz disparates. O povo que elegeu Bush ou Berlusconi não me merece respeito; tenho por ele somente temor.






Montanhismo

O texto de Montaigne sobre a amizade é uma das mais belas tentativas de encerrar em palavras esse sentimento etéreo a que se convencionou chamar amizade. Etéreo porque é isso que se depreende das palavras de Montaigne e é também isso que nos contagia ao lê-lo: a amizade enquanto amor inclassificável. Sentimento perturbante que nos enlevando nos faz simultaneamente querer ficar presos à terra. O mais telúrico dos sentimentos, descrevo-o na sua infalibilidade, e se ela por vezes se trai ou falha na sua própria revelação é porque não era verdadeira amizade, como nos ensina Montaigne. A amizade não tem trocas nem sacrifícios. Quando Montaigne se interroga sobre a razão de amar um amigo só lhe ocorre o sentimento mais puro e verdadeiro para expressar o que afinal se encontra inamovível: Parce que c’était lui; parce que c’était moi.

Leio-o sempre com um prazer inexcedível, na certeza porém de que a amizade é um resquício da antiguidade clássica, uma ruína, que hoje em dia só se encontra sob a forma de palimpsesto.

Mexiofobia

Vi por entreposta pessoa, vi com estes que a terra há-de comer, se a tanto se lhe oferecer palato e disposição, o que diz o Mexia sobre a literatura. E este rapaz que sempre me ofuscou com as suas tiradas flamejantes e os seus pensamentos relampejantes, diz agora que a literatura se baseia na fantasia. Pedra angular de todo o saber – diríamos ainda com Bloom “where shall wisdom be found”, bom aqui não é com certeza -, a velha questão de saber se é a vida que imita a literatura ou a literatura que imita a vida é de novo resgatada e desta feita por mão de mestre. Ars longa vita brevis, portanto. Responde o plumitivo “muita da grande literatura nasceu da imaginação ou da fantasia (...) muitos escritores, nomeadamente dos géneros mais radicais, não viveram nada do que escreveram”. Dei comigo a pensar se isto não seria uma fraude mais disseminada do que parece a priori. Questões importantes revolveram-se-me no cérebro: terá a Ana Faria vivido tudo aquilo com os queijinhos frescos? Será que o Luís nunca foi a Paris e em vez disso foi ao Barreiro? Será que Ana com a sua imaginação faiscante transformou as gruas da Lisnave no austero e geométrico desenho da torre eifel? Tantas questões que ficam sem resposta, suspensas nessa dobra mal definida entre a vida e o literário.
Mais à frente jura Mexia que Sade “terá sido razoavelmente libertino, mas nada que se compare aos infernos sexuais que deixou associados ao seu nome”. Aqui temos que reconhecer que a fleuma e despreocupação que Mexia denota ao referir-se às perversões de Sade só nos podem merecer admiração. Para Mexia as coisitas do Sade sabem a uma razoável libertinagem porque comparado com ele, sugerimos, Sade foi um debutante. Sempre atormentou a jovem direita intelectual que Sade pudesse de facto ter sido o perverso violento e maníaco que deixa entrever nos seus textos. Mas na verdade foi mesmo; embora custe saber que houve um gajo que além de escrever a levou bem vivida –se descontarmos as inúmeras vezes em que ele foi bater com os costados na Bastilha.
Por fim, Mexia remata com frase inspirada que “escrever é uma modalidade de viagem, e é natural que queiramos viajar por sítios onde nunca fomos”. Principalmente se andarmos à boleia.

quinta-feira, abril 06, 2006

Oni soi qui mal y pense.

OK – regressei. Peregrinei pelo deserto, comi gafanhotos e escolopendras, preveni-me de um diário de asceta e agora volto em gesto epifânico, eventualmente última aparição de alma humana neste blogue em lento estiolar.

A razão do meu regresso tem o seu quê de religioso, pois move-se pelo mesmo ódio que só os verdadeiros fiéis podem dirigir contra os falsos prosélitos. O meu ódio (e talvez ódio seja uma palavra demasiado forte; substitua-mo-la então por desespero), o meu desespero perante a negação do pensamento, a subversão da ideia, a emasculação do raciocínio. Este sentimento que me assola logo pela manhã, ganha corpo no correr da tarde e floresce como uma gangrena lá pela noitinha resume-se a uma palavra: o canhoto. Este blogue enerva-me. Por conseguinte, reapareci para partilhar com o mundo os últimos dislates e inanidades de que por lá se faz eco.

Diz-se “laico não é qualificativo de cidadão”

Absurda porque “laico” não é qualificativo de cidadão (como não o são, também, por exemplo, “quente”, “caudaloso” ou “frondoso”). Laico é qualificativo de Estado e significa neutralidade religiosa do mesmo para que todos os cidadãos possam usufruir não só de liberdade religiosa mas também de liberdade em relação à religião.

Cum caneco e eu a julgar que eles tinham apoiado um que se diz laico e republicano. Era afinal o Estado aquilo de que ele se reclamava? A incorporação do Estado na pessoa do candidato como a dupla pessoa do Rei? E se só o Estado é laico (mas poderá também ser quente e frondoso? E por que não?) o que se dirá então de um cidadão que acredita que o estado deve ser laico e não religioso? Será um “lacão”? Não, talvez um liberal. Mas há liberais que não são laicos e não deixam por isso de ser liberais. Ou não?

O conceito de laicismo: um Estado que tolera diversas religiões - diz resumidamente RPP. Mas será? O problema é que o laicismo foi desvirtuado. Ele é a França a reclamar-se de um Estado laico. Ele é Soares a dizer que é laico e republicano. Ele é a discussão sobre a constituição europeia que pende entre reconhecer a herança cristã (a bom porto chegaríamos se reconhecessemos igualmente a muçulmana) e assumir-se como laica. E a multiplicidade de vulgarizações do laicismo vai surtindo os seus efeitos e calando fundo. Só o Estado é laico porque tolera diferentes religiões, e por isso se considera...democrático e liberal. Pena é que o elemento importante desta equação tenha desaparecido: precisamente, o cidadão laico. Porque este não é apenas o que tolera; na verdade se alguma coisa corresponde ao laicismo é o movimento contrário, o de rejeitar esse pathos tolerante que se alicerça na transcendência. O laico pugna contra o dogma, rejeita a ideia segundo a qual a fé se firma neste último e portanto é ininterpelável, toma uma posição de escrutínio perante a justaposição entre lei religiosa e humana e interroga a religião quanto ao seu cerne – a lógica salvífica. Por conseguinte, ser laico é antes de tudo o mais assumir uma posição crítica perante a(s) Igreja(s) e a(s) sua(s) doutrina(s). Na dicussão sobre a laicidade do Estado evacuou-se esta preocupação que foi substituída, higienicamente, pela ideia de tolerância. Não serão estes apagamentos o sinal óbvio de “fascismo social”? A Igreja convive com um Estado laico na premissa de que este se atém a aceitá-la e a não definir o lugar da religião na comunidade, mas é-lhe impensável viver com uma comunidade de cidadãos laicos que passam as suas doutrinas pelo crivo da racionalidade. Ora, este binómio é constituite dos dois planos diferentes de assunção do laicismo. Parece que ser laico é abençoar todos os cultos, quando na verdade ser laico é não abençoar nenhum.

Deparo-me mais acima com a verrina costumeira dedicada a Boaventura. Já disse e repito: não concordo com muita coisa que o Boaventura diz, mas se quiser divulgar as minhas opiniões sobre ele é bom que vá munido com algo mais do que dixotes e leituras caseiras. RPP compara Boaventura a Manuel Alegre quanto à sua irresponsabilidade. Ora, só isto já é exemplo suficiente de irresponsabilidade. Parece que Alegre comparou a situação actual do Portugal contemporâneo com o fascismo de Salazar. E logo isto deu azo a acusação por parte do canhoto de irresponsabilidade; e porque não se podia deixar passar um coelho sem canhoar o outro, lá se trouxe o Boaventura à colação para criticar a expressão, também ela irresponsável, “fascismo social”.

Comparar com a inquisição será branquear a mesma? E comparar com o despotismo iluminado será incensar este? Nestas comparações a que se aplicou o ferrete do não-dito parece que o que se encontra verdadeiramente subjacente é um princípio de salvação quer do objecto comparado quer da instância utilizada para a comparação. Este raciocínio de benevolência anémica e retrospectiva deve ser deliberadamente rejeitado. Não se pode comparar com o holocausto porque é diminuir o horror que este representou. Mas perante este imperativo categório o que se salva é o holocausto pela simples razão de que a comparação é dessacralizante. Não é verdade que na teologia clássica nada pode ser comparado com Deus? E não é justamente esta impossibilidade que lhe outorga a condição de absoluto? Estamos numa fronteira muito perigosa. O que tem acontecido com esta proibição instituída de comparar “com” o holocausto, senão a sacralização do mesmo. Não é o problema da sua minorização que preocupa os Judeus; é antes o medo da dessacralização: apenas um acontecimento divino na sua proporção poderia levar a uma terra prometida por um deus. Fecha-se o círculo: a sacralização do holocausto é absolutamente instrumental para o mito do regresso do povo judeu.

Ressalvadas as distâncias é difícil não perceber que este abafamento das comparações com o fascismo pode ser interpretado da mesma forma. A anulação do fascismo como objecto de comparação revela o mesmo empenho em sacralizar um momento histórico. Nem tão-pouco se compreende porque é que a utilização do termo fascismo apenas remete para o salazarismo que é o que se depreende da comparação –certamente inusitada- entre o desabafo de Alegre e o conceito de Boaventura. Esta visão redutora que presentifica o fascismo enquanto memória de um regime esquece por completo que o fascismo foi e é um conjunto de práticas. Da mesma forma o totalitarismo não pode ser reduzido ao estalinismo, embora através deste possa ser historicamente sinalizado. Se assim é, qual a razão para dizer que o “fascismo social” é apenas uma metáfora e não um conceito? (havia que discutir esta distinção singular, pois as fronteiras entre os dois termos estão longe de ser claras e muito menos de serem facilmente operacionalizadas, mas isso levar-nos-ia a uma deriva por outras paragens). Ao contrário do que diz RPP, se quisermos ser objectivos, é justamente o termo fascismo social que nos ajuda a estabelecer uma correspondência entre traços de regimes fascistas e práticas actuais que podem ser identificadas como tal. Se mais não fosse preciso, bastava ler o artigo do Guardian sobre as universidades americanas (que é citado no canhas) para perceber que se assiste a um reinvestimento em práticas que podemos sem grande rebuço considerar como propriamente fascistas. Estaremos a desvalorizar o conceito ao utilizá-lo num outro contexto historico-social? Pelo contrário, se alguma coisa, estamos a reactualizá-lo para nomear “coisas” que dificilmente podem ser nomeadas dentro do quadro da democracia. Não é apenas o silenciamento das práticas é também o silenciamento da nomeação que afecta a nossa liberdade e a forma como nos representamos perante todos os outros agentes.

É neste sentido que só nos podemos espantar com as seguintes declarações que mais uma vez patenteiam uma extrema desonestidade intelectual

expressão
“fascismo social” proposta e divulgada por Boaventura Sousa Santos (BSS). Com a expressão quer o autor classificar o carácter não democrático do “regime social”, por contraposição com o do “regime político”. Como no regime social não há mecanismos de decisão próprios para além dos políticos, a expressão é metafórica, não conceptual, apesar da fuga para a frente ensaiada quando se fala do “poder de veto” sobre o social dos “actores não estatais”.

Mas não é nada disto que diz Boaventura no artigo para que o canhoto nos remete. Então que diz ele: “trata-se de uma nova constelação sociopolítica caracterizada pelo confinamento da democracia a um campo político cada vez mais estreitamente definido” onde os actores não-estatais assumem um poder de veto sobre a vida dos despossuídos de poder. E isto faz toda a diferença. Ocorrem-nos facilmente miríadas de exemplos que se integram perfeitamente nesta descrição: o poder total de despedir alguém que não possui qualquer influência no mecanismo que o exclui, acção que é por essa razão absolutamente heterodeterminada. Este conjunto de micro e macro poderes que esvaziam a capacidade de autodeterminação do seu sentido positivo (estaremos então em presença da ilusão de autodeterminação, mas que é autodeterminação meramente negativa dado que apenas responde ao desejo de não ser excluído), parece-me merecer o apropriado termo de fascismo social. Não era este o mecanismo de imposição dos fascismos políticos? Não há nada de metafórico nisto, assim como não havia nada de metafórico nas listas negras do mccarthismo.

Começo a perceber a origem do título do blogue. É canhoto porque por lá se passa a vida a bater punhetas – não tem nada a ver com o posicionamento político.


(ps: mas não sou cristo; sou o baptista)