O mundo plano

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sexta-feira, dezembro 30, 2005

O Erro da Esquerda



Quando a candidatura de Cavaco foi anunciada a esquerda regozijou-se por ter encontrado a estratégia perfeita para cortar cerce a investida do dito. Esse milagre do tacticismo político pairava no ar com a sonoridade canora das melopeias encantatórias, com a vertigem do canto das sereias, com o indefectível apelo das palavras de ordem. Da candidatura de Jerónimo de Sousa aos bastidores das duas candidaturas socialistas murmurava-se em uníssono que a fórmula mágica tinha sido encontrada e esta resumia-se numa palavra que, estando na moda, convém sempre convocar com alguma cautela: fragmentação.

Multiplicar os focos de crítica ao candidato da direita, previa-se, deixá-lo-ia de tal forma atarantado que acabaria por se dissolver no seu próprio cabotinismo, geralmente travestido de solenidade estatal. Cavaco pode ser muita coisa, mas não é parvo. Pode ser inculto, mas não é ingénuo. Pode até ser sensaborão, desinteressante e monocórdico, mas não é, definitivamente, distraído. Por isso foi construindo laboriosamente aquilo que já frequentes vezes houvera sido testado em matéria de lides presidenciais e que permite assegurar a vitória mesmo antes de se ter expressado uma ideia; a regra de ouro usada pelos seus antecessores e que tão bons resultados tinha prodigalizado. O “Eanismo”, chamemo-lhe assim, em honra do seu primeiro proponente: essa teoria política que coloca o candidato acima da política sem daí lhe retirar mérito ou audiência. O Eanismo tem pelo menos três características que merecem escrutínio:

1- o candidato apresenta-se como figura tutelar que reúne um consenso nacional que, pela sua própria natureza extra-política, é suprapartidário.
2- O candidato é tanto mais apreciado quanto se mostrar detentor de um saber prático que colide, e daí retira precisamente a sua força, com as lógicas meramente retóricas do partidarismo.
3- Este saber prático deve (e sublinho) ter o seu equivalente numa sua expressão prática que passa necessariamente pelo direccionamento do governo e da sua actividade governativa. Donde a ingerência ser a única coisa que o eleitor espera de um tal candidato e não a distanciação.

Estes três eixos ajudam-nos a compreender e a balizar os passos dados por Cavaco e a prever com alguma segurança – pesem embora as vicissitudes inerentes à política – que onde a esquerda julga que Cavaco se “enterra” (passo o vernáculo) é onde ele, com efeito, capitaliza. Por exemplo a virulência com que Soares tem atacado Cavaco joga absolutamente a favor do segundo e totalmente em desfavor do primeiro. A explosão de alegria, que dir-se-ia quase infantil, provocada nos candidatos da esquerda pela sugestão da secretaria de estado leva-nos a interrogarmo-nos se saberão estes em que país vivem. Principalmente Soares que, acusado que foi tantas vezes de ser força de bloqueio, se vê cair em contradição quando acusa o seu opositor de interferência nos assuntos do governo. Ingerência! – diz Alegre, Soares e Jerónimo. Presença! – retorque o povo que procura avidamente um timoneiro. Vazio discursivo! – gritam os candidatos e os media mais rebeldes. Experiência! – admoesta o povo que se vê reunido em torno de um salvador. Louçã começou por mofar do sebastianismo que envolvia a candidatura de Cavaco não percebendo, eventualmente, que essa aura sebastiânica se encontrava minguante nos candidatos da esquerda. A ideia segundo a qual a mensagem política tem que possuir um conteúdo que vá para além das meras técnicas de arregimentação é de um idealismo naif que tem custos.

Lembrou recentemente Ernesto Laclau que o vazio é precisamente o espaço ideológico onde se cria “o povo”. Não nos esqueçamos (embora por vezes, estando de tal forma encadeados com as noções de pós-soberania, multidão e quejandas, julguemos que tudo é fluxo e dispersão e nada é unidade) que existe uma inequívoca linha entre soberania e populismo e onde “o povo” ganha contornos reforça-se a soberania. Com todo o aparato mediático e de marketing as mensagens no subtexto são as mesmas e sempiternas estratégias do populismo: o leader populista assume-se enquanto denominador comum de um conjunto de reivindicações não satisfeitas; substitui-se a esse clamor transferindo-as para o seu próprio nome através de uma putativa representatividade: ele passa a representar os agravos do “povo”. Ora estes agravos só podem ser contra quem tem o poder institucional para os corrigir, isto é, o Estado. Se o Estado é o inimigo não admira que Cavaco reivindique para si um estatuto acima da política (já ouço o burburinho de quem indignado replica que a política vai muito para além do Estado e que este é, ao invés, o entorse do político por excelência. Pode até ser, mas em processos eleitorais, porventura lamentavelmente, parece-me que o que ainda pesa é o Estado). Donde a postura interventiva de Cavaco: o povo delegou-lhe a capacidade de corrigir o funcionamento do Estado; pouco interessa se ultrapassa os preceitos constitucionais ou não. A ideia de que Cavaco vai “corrigir” está entranhada nas mentes do eleitorado cavaquista; e Cavaco não se faz rogado perante a expectativa.

A imagem consensual de Cavaco, precisou, e mais precisamente, alimentou-se, da imagem de discórdia no seio da esquerda. A divisão da esquerda não é propriamente uma novidade. Aconteceu no tempo do triunvirato Soares, Zenha e Pintasilgo (embora fossem mais as afinidades do que as diferenças). Zenha desistiu e Soares e Pintasilgo continuaram. O desfecho é conhecido e a segunda volta colocou num frente a frente renhido e quase sanguinolento (mandavam-se então os comunistas para a Sibéria) o então candidato da direita Freitas do Amaral e o consensual (para quem aprecia anfíbios) candidato da esquerda Mário Soares. O que estas eleições tiveram de particular foi o embate entre duas figuras tutelares (não interessa o grau de correspondência com a realidade) que polarizaram o campo político. Na campanha que decorre passou-se exactamente o contrário: instigou-se a uma luta fratricida entre dois candidatos do mesmo partido; a esquerda perdeu mais tempo a digladiar-se intestinamente do que a concertar-se contra a direita. Embora custe aos rizomáticos de serviço por vezes a polarização é a estratégia ideal para ganhar eleições.

Suspeita-se que a maioria dos candidatos já partiu para a refrega com a certeza da vitória de Cavaco. Que o que realmente entusiasmou Soares ou Louçã não foi a possibilidade de se alojarem em Belém, mas sim a oportunidade de confrontar Cavaco e destilarem sobre ele o despeito que há muito lhe guardavam. Houve qualquer coisa de vingança pessoal que mobilizou mais os candidatos da esquerda do que propriamente um projecto presidencial. Porventura é o antever da derrota que leva Soares, e levou desde o início da campanha, ao seu incaracterístico desbragamento. A sanha com que se previa o embate tão aguardado entre os dois economistas, Cavaco e Louçã, levou comentadores a cotejarem papers publicados no estrangeiro e no país como se tratasse de uma competição académica; e levou Soares a acusar Cavaco de mediania académica como se ele fosse um génio da academia. Nada disto faz muito sentido e vejo-me forçado a aceitar as opiniões de Lobo Xavier quando diz que quem mostra estar a crispar a vida política é Soares e Alegre.

E agora? Bom, em minha opinião, estão criadas as condições para o tão ambicionado pleno da direita por que perorava Marcelo Rebelo de Sousa à dois anos atrás e que se vira gorado com o descalabro Barrosista. As intenções de Cavaco são a este propósito claras. Desacreditar o governo em funções (clama P. Pedroso por uma reacção do PM e bem); preparar o terreno para um futuro governo PSD encabeçado, quem sabe, por um Durão Barroso revigorado pela estada europeia (também aqui o sebastianismo vai assentar que nem uma luva); e ter a presidência mais interventiva de sempre para resgatar o seu nome ao olvido da história. Talvez se anuncie uma deriva presidencialista que mude o rosto do sistema político.

(para o anónimo que clamava por sangue, vou tentar ter uma presença mais assídua assim que tenha condições para o exercício)

Só me resta desejar um feliz 2006 para todos - leitores e participantes.

1 Comments:

  • At 2:51 da tarde, Blogger achasprafogueir@ said…

    A análise do personagem Cavaco aparece aqui habilmente delineada e representativa de todo o oportunismo e maniqueísmo populista que caracteriza esta candidatura. E este é o cerne da questão! Temos perante nós um Cavaco messiânico, lapidado com todo o cuidado pelos partidos da direita ao longo de 10 anos, depois de numa primeira tentativa ter sido derrotado pela sua própria imagem de descrença e despotismo.
    Não é de estranhar o conceito de não-político-profissional... é mais um produto de marketing bem arquitectado para limpar uma imagem de um homem tecnocrata sem qualquer ideal e responsável pelo actual estado de descrença económica e social do país. Acrescente-se ainda a imensa falta de cultura política do candidato Aníbal, que aparenta desconhecer a constituição, que supostamente irá representar e defender.
    Lamento acima de tudo, que a esquerda, ofuscada pela sua suprema sapiência, tenha descurado o potencial mimético da direita ao se apropriar do espaço político de outrem. Lamento ainda que esta mesma esquerda não denuncie sem complexos, todos os erros gravíssimos de gestão de um país, baseados na economia neo-liberal cega, que passados 20 anos vem agora apontar como sendo solução as medidas que deviam ter sido tomadas então. A responsabilidade continua a morrer solteira. A memória continua a ser curta. O futuro continua a mostrar-se negro. A liberdade continua a não ser de esquerda. A esquerda continua sem se libertar dos fantasmas Soaristas de outrora.

     

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